Opinião: Conhecimento do passado e democracia

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A produção e a perda da memória são fenómenos inerentes à vida de todos os dias, seja esta individual ou coletiva. Não se considera aqui o processo essencialmente biológico, traduzido na capacidade humana para recordar experiências anteriores inserindo-as numa narrativa, que a passagem do tempo tende a deteriorar, ou por vezes a embelezar, referindo-se antes o eterno fenómeno da evocação memorial do passado. Ao contrário da história, que é um saber analítico associado a rigorosos meios de prova, contendo uma forte componente de objetividade e segurança, a memória, encarada nesta segunda perspetiva, é em larga medida uma construção livre, subjetiva, ancorada em evocações que chegam, se transformam e logo partem, sempre pautadas por uma dose de incerteza.
Todavia, e apesar desta dimensão flutuante, é em boa parte a memória, lembra Enzo Traverso em «O passado, modos de usar», que «estrutura as identidades sociais, inscrevendo-as numa continuidade histórica e dotando-as de um sentido, ou seja, de um conteúdo e de uma direção». Dito de outro modo: é pela intervenção da memória, sobretudo daquela que partilhamos com os outros, que se produz o nosso modo de olhar o mundo, o da vida pessoal e o da comunidade que integramos. Os dados da história são sobretudo um complemento, como faróis que pontualmente demarcam o recorte costeiro, enquanto a memória nos acompanha a todo o momento, enquanto cenário que influencia o nosso modo de ver o mundo do presente e de nele agirmos.
É nesta dimensão que a memória pessoal converge necessariamente com a social. Que o que cada um de nós vai recordando como seu se articula com o que nessa dimensão partilha com o grupo ao qual pertence. Com a profissão x, morando na cidade y, tendo a nacionalidade z, enquadrado política ou culturalmente num determinado universo ou ideologia, o que cada um de nós é torna-se então uma componente dinâmica de cada um desses coletivos memorialísticos. Todavia, este processo intuitivo de ligação partilhada com o passado nunca é imutável, transformando-se regularmente de acordo com diferentes contextos. Para que isto se torne mais claro, refiro dois exemplos.
Há alguns anos, ao trabalhar sobre a história dos movimentos estudantis, cruzei-me com um livro de Mark E. Boren onde este sublinhava, como particularidade desse universo do conflito social, que as sucessivas gerações de estudantes que o iam preenchendo, dado o tempo de presença no ambiente universitário ser curto e cada geração cortar com a seguinte, que eles estavam sempre a «perder memória», recomeçando quase a partir do zero. Na minha própria experiência enquanto historiador, e também como antigo ativista, pude constatar como em Coimbra, entre a geração que viveu a fase de resistência ao regime de 1962-1969, e aquela que conheceu o período de radicalização política vivido em 1971-1974, existiu, e assim permanece na memória de quem as integrou e do processo não possui uma visão documentada de conjunto, um fosso de incompreensão.
Outro exemplo do caráter ambíguo da memória partilhada deteta-se quando observamos, nos regimes democráticos, os valores de liberdade, verdade, igualdade, solidariedade, e até de património, serem apropriados pelas correntes populistas, que deles se servem, aproveitando o prestígio que por muito tempo mantiveram como marcas do combate por sociedades mais justas e livres, para subverterem o seu sentido, usando-os na instalação de regimes autoritários. A forma mais eficaz de impedir que o caráter móvel da memória possa servir, com o apoio de mitos e falsidades, como perigoso instrumento de manipulação do presente, é acompanhá-la, junto do cidadão comum e da opinião pública, com um conhecimento sustentado e crítico do passado. Para isto é fundamental que a segurança da história auxilie a incerteza da memória.

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