Opinião: “Do labirinto da história (e respetivas heranças)”

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A História, quando treslida, tanto pode ser um lugar de santidades como um ajuntamento de belzebus. E sendo apresentada como se fosse uma novela, permitirá ao respeitável público agrupar emoções em torno de heróis e de vilões, como quem sofre dores alheias de ficção, por cima das próprias dores. As chamadas narrativas, se construídas com intenção e sabedoria, conseguem gerar realidades virtuais mais verossímeis do que as realmente acontecidas, servidas como se fossem verdades indiscutíveis e, portanto, geradoras de convicções. Ciência mais eficaz do que a alquimia, a manipulação tem o seu segredo na habilidade de juntar muitas mentiras a rastos de verdade, cumprindo aquilo que António Aleixo caraterizou deste modo: “Para a mentira ser segura / E atingir profundidade / Tem de trazer à mistura / Qualquer coisa de verdade”.

Não vale o conhecimento da verdade histórica – aquela que resulta do confronto de todas as razões em presença – para mais do que resolver vidas. Percebe-se, por isso, que se envolvam tantos meios na orientação das consciências, desde as fake news à precariedade laboral, umas e outra feitas para produzir medo (da realidade, no primeiro caso, da fome, no segundo), essa milenar ferramenta de garantir desequilíbrios sociais. Está provado que é possível um humano viver a vida inteira na maior das pobrezas, queixoso da sua condição e, assim mesmo, conformado. Mas está também provado que, no caminho a que chamamos História, a Humanidade revela crescente vontade de concretizar a regra de “a cada qual segundo as suas necessidades, de cada um segundo as suas capacidades”.
Quando o 25 de Abril de 1974 se transformou em revolução, havia quem, por cá, tivesse acesso a tudo o que é essencial à vida. Mas eram poucos. Quase meio século depois da “madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”, de Sophia e de todos os democratas, já ninguém que viva do seu trabalho discute a validade dos subsídios de desemprego e de Natal, a importância da licença de parto e da suspensão dos despedimentos sem justa causa, a garantia do direito à greve e a utilidade da negociação coletiva, a importância da valorização do salário mínimo nacional e do regime de proteção social dos trabalhadores agrícolas. Do mesmo modo que qualquer democrata deseja a eternidade para o ganho da liberdade de associação e de atividade dos partidos políticos, celebra o primeiro impulso de alfabetização e a chegada dos médicos à periferia (substituindo joões-semana de boa intenção mas reduzido préstimo), recorda as primeiras políticas de habitação visando a erradicação das barracas, onde à data da Revolução vivia mais de um milhão de portugueses.

Tanta boa ação parece coisa de santos. Mas não. São coisas da nossa História, acontecidas no tempo do diabolizado PREC, saídas dos decretos que um governante assinou em momentos (às vezes pintados) com cores sombrias, que o tempo há de clarear. A memória dos criadores de dignidades esfumou-se já no labirinto tortuoso da memória coletiva. Mas a Torre do Tombo guarda ainda os decretos e deixa perceber o primeiro nome dos governantes de então: “Vasco Gonçalves”. Nem nome de santo nem alcunha de belzebu. Um homem, nascido faz agora 100 anos, entre muitos outros que sonharam uma sociedade justa, que – é da História – tarda mas virá.

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