Opinião: Tapar as vergonhas

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A maioria de nós está-se nas tintas para o volumoso processo de José Sócrates. Está-se nas tintas porque não precisa de o ler para saber que o ex-primeiro-ministro é culpado de praticamente tudo quanto é acusado. Isso é de tal maneira claro na cabeça da maioria de nós que até já o condenámos. Não agora, mas há muito. Fosse a Justiça tão célere a julgar como nós – que tiramos os arguidos pela pinta –, e os casos não durariam sequer um par de dias: um para a abertura do caso, o outro para o encerramento. Ao invés, o de Sócrates dura há vários anos. Depois de um período de investigações, o político foi detido em 21 de novembro de 2014, quando desembarcou no aeroporto de Lisboa. O prenúncio do que viria a seguir começou precisamente aí, com a sua detenção em direto pela televisão.
Pelo impacto social, pela relevância das pessoas envolvidas e pela demora, é legítimo que a decisão do juiz de instrução, Ivo Rosa, seja alvo de escrutínio e de crítica. O preço da liberdade é a vigilância. Já não é aceitável a crítica pessoal ao juiz. Por muito que a sua decisão contrarie a nossa convicção popular.
Ao longo dos últimos anos foram sendo selecionados detalhes sobre o processo com vista a fornecê-los, a coberto de anonimato, à comunicação social. Esta ação vinha com o objetivo de criar uma determinada perceção pública. As fugas de informação passaram a valer mais que o processo. Compreendo os jornalistas. Cada vez mais, o escândalo é uma mercadoria que interessa aos media, entretém e diverte o público, serve de argumentário a adeptos do “clubismo” partidário e ajuda, por isso, a alcançar audiências. A política, infelizmente, tornou-se num lugar privilegiado do espetáculo, num palco de entretenimento.
O mexer dos cordelinhos, a cunha piedosa, a tentativa de pagar menos impostos, estão muito enraizados na nossa cultura. A culpa não está apenas na política! Está em todos nós. Na maioria de nós. Por isso, ninguém se sente verdadeiramente escandalizado com este caso. Como Sócrates já esteve preso preventivamente, durante 288 dias, tanto-faz-como-tanto-fez que regresse novamente à prisão. Desde que continue a divertir-nos, o caso cumpre o seu papel redentor, como o bíblico bode-expiatório, da tradição hebraica, que pagava pelos pecados de todos. Embora a este não lhe atribuamos assim tanta inocência…
Por outro lado, ninguém enjeita, com um certo esgar de gozo, ver um político de calças na mão. No fundo, foi esta deliberada intenção que foi sendo criada por quem vazava no colo das televisões as peculiaridades do caso, incluindo a divulgação de vídeos dos interrogatórios a José Sócrates. Nessa sequência, em 17 de abril de 2018, o Ministério Público passou a investigar, inclusive a si próprio, para apurar de onde vinham tais fugas. Parece haver consenso sobre o alegado falseamento do sorteio para que o caso tivesse calhado ao juiz Carlos Alexandre. Digo alegado, não provado.
A Justiça podia ter-se cingido ao caso. Mas fez ou deixou fazer política com ele. A Justiça podia ter-se cingido ao caso. Mas fez ou deixou fazer justiça mediática e popular com ele. A Justiça podia ter feito justiça. Mas é lenta, sofre de vícios e de privilégios que a narcotizam, está demasiado emaranhada em si mesma, não fornece uma boa perceção pública de si mesma. Fosse Sócrates mais ou menos indiciado por supostos crimes, a Justiça perderia sempre. Talvez esta seja apenas a parte visível do problema, escondendo, como um icebergue, problemas bem maiores que se encontram submersos. Felizmente, para contrabalançar, há juízes bons, há magistrados bons, há advogados bons, há polícias bons, há políticos bons

PS: Procuro amigo rico, mãos-largas, de preferência com apartamento em Paris, para relacionamento de amizade sincera.

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