Opinião: Não alavanquem disrupções!…

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Vivemos um período, em termos discursivos, em que tem de ser-se disruptivo, de forma a construir um texto robusto que consiga alavancar, de maneira orgânica, a atenção dos potenciais leitores…
A frase que acabei de redigir, deliberadamente estranha, intencionalmente seca, pretende exemplificar a nova moda linguística, com recurso a alguns termos de abuso recente e à adjectivação estereotipada que afecta a generalidade das intervenções que se vão lendo e ouvindo nos meios de comunicação social.
Nada que seja muito surpreendente numa época em que até a inteligência é artificial…
Daí que eu tenha decidido aproveitar este espaço, dedicado aos antigos estudantes de Coimbra, para evocar dois deles. Porque em ambos (tal como em milhares de outros que pelos bancos da nossa Universidade foram passando ao longo dos séculos) a escrita é, apetitosamente, o oposto do linguajar uniformemente plastificado, insípido, asséptico, que agora sói usar-se…
Deliciem-se com esta transcrição:
“Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguda à maneira siríaca, reluziam, aureoladas. O braço inspirado mergulhava nas alturas como para as revolver. A capa, apenas presa por uma ponta, rojava por trás, largamente, negra nas lajes brancas, em pregas de imagem. E, sentados nos degraus da igreja, outros homens, embuçados, sombras imóveis sobre as cantarias claras, escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos.
Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII — mas um bardo, um bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades. O homem com efeito cantava o céu, o infinito, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura e
…os transcendentes recantos
Aonde o bom Deus se mete,
Sem fazer caso dos Santos
A conversar com Garrett!
Deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou por entre os lábios abertos de gosto e pasmo:
— É o Antero!…”

Infelizmente, o espaço que aqui me concedem não permite que alongue a transcrição.
Direi apenas que o autor deste saboroso manjar linguístico é Eça de Queirós, que assim descreve, nas “Notas Contemporâneas” (editadas em 1896 ), o seu primeiro contacto com Antero de Quental, quando ambos cursavam a Universidade de Coimbra.
Aos que vão, “disruptivamente”, empobrecendo a linguagem que usam para “alavancar” o que quer que seja, sugiro que leiam ou releiam estes e outros dos nossos clássicos, assim descobrindo, e passando a utilizar, de forma “robusta”, as maravilhosas potencialidades da nossa magnífica língua portuguesa…

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