Opinião: Enquanto há canto há esperança

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A História é o somatório dos passos todos. Registarão os livros as pegadas mais salientes, mas raramente contarão a história toda. Olhar para trás, olhar para a frente, é sempre uma questão de ponto de vista. Ou de ponto de escuta, já que o que se pretende aqui contar é, das páginas do 25 de Abril, aquilo que ali foram canções.
Longe irá o tempo em que se descobriu que o canto era o mesmo que um manifesto, uma tomada de posição, uma opinião que depressa tomaria as vozes de muita gente. Foi assim na música de trabalho, quando os cantos eram guia da função (como na cava do bacelo da nossa região) e desabafo bom ou mau das voltas que a vida dá. Enquanto o pau da História vai e vem, a canção vai sublinhando acontecimentos e vontades. Terá sido assim nos tempos de Maio de 1926, enquanto uns impunham marchas militares, outros cantavam os fados “operários” dos centros industriais – panfletos cantados do tempo do analfabetismo – repartindo sortes com as tais cantigas de trabalhar a terra.
Nos tempos da ditadura outros cantos haveria nos lugares da repressão. Mas adivinhamos que o sol áspero da terra seca do lugar de Chão Bom não há de ter deixado espaço para canções nas gargantas dos prisioneiros do Tarrafal. Apenas o silêncio naquelas vozes massacradas.
Coimbra, aqui onde a quiseram lugar de apenas-saudade e boémia, foi estação principal do canto insurreto. Aqui nasceram Trovas do Vento que Passa, denúncias de Vampiros e mais cantigas que puderam ser da História de Portugal. Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Luis Góis e tantos outros seriam os cantores do 25 de Abril antes mesmo de haver data marcada. Como Lopes-Graça que, antes desse tempo, já tinha escrito os cantos que animavam uma oposição que era democrática e, por isso, perseguida. Apenas pelos cantos (que eram, afinal, mais do que “apenas”), fazendo caminho junto a Pedra Filosofal, Cantata da Paz, A Morte Saiu À Rua, Acordai e tantas mais, de que resta memória, mantendo-se a razão de ser.
No início da operação militar a voz de Paulo de Carvalho anuncia o adeus ao regime do chamado Estado Novo num “quis saber quem sou” a que, poucas horas mais tarde, o povo de Lisboa responderia decidido e em massa. Em 25 de Abril de 1974 cumpriu-se a toada que dizia “Ergue-te ó sol de Verão / Somos nós os teus cantores”. Mas, antes, soaria um canto-senha revolucionária com feições alentejanas, e as ruas seriam tomadas pelas armas da Revolução carregadas de povo. Nos dias logo a seguir àquela madrugada, “Grândola Vila Morena” não correria ainda afinada nas vozes das multidões. O refrão seria ainda, nas ruas desta Coimbra e por Portugal inteiro, “O Povo Unido Jamais Será Vencido” nascido no Chile da Unidade Popular, a rítmica da frase marcada pelos punhos levantados. As muitas canções viriam a seguir, aprendidas nos espetáculos de Canto Livre que ocupavam as praças e transbordavam para uma rádio que, a pouco e pouco, ia desistindo do reportório do chamado nacional-cançonetismo. O canto de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire, entre tantos mais, tinha passado do palco das coletividades de cultura e recreio para o espaço público.
Sabemos o resto da História, conhecemos-lhe as canções. Não se pense, porém, que o propósito “interventivo” dos cantos é exclusivo do tempo passado. No dia em que um cantor nascido muito tempo depois de 25 de Abril de 1974 cantou “Eu não quero pagar /por aquilo que não fiz” ficou dito para os nossos dias que o canto de querer mexer no mundo não tem os dias contados. Enquanto há canto, há esperança.

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