Opinião: Dogmas e rituais da escola Os exames são falsos

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Vamos aos factos. Os exames de estado para entrar nos quadros de professores efetivos do ensino secundário até pouco depois do 25 de abril eram exigentes e seletivos. Pertenci aos últimos júris da sua vigência e foi aí que tomei consciência do caráter errático do professor como classificador. O presidente era um professor catedrático da respetiva área disciplinar e os vogais eram metodólogos dos liceus normais de Coimbra, Lisboa e Porto. Facto relevante: sete membros de um júri avaliaram e classificaram, em casa, a prova escrita de um candidato. As classificações atribuídas, todas diferentes, variavam entre 7 e 14 valores. Os membros do júri eram inexperientes e incompetentes? Não, eram diferentes. Pessoas diferentes avaliam de forma diferente.
Na mesma fase, fui autor de questionários de exames do ensino secundário e pude comparar classificações das provas de exame com as classificações das mesmas provas em instância de recurso, avaliadas por outros professores. As divergências foram as mesmas dos metodólogos. A conclusão é fácil: o professor, por mais competente e experiente, não tem o rigor de uma balança nem de uma fita métrica. É um instrumento de medir instável e o objeto a medir não tem consistência objetiva para uma medição exata.
Há 25 anos, com os dados da minha observação e da já vasta literatura da especialidade, escrevi quatro artigos no jornal O Público para mostrar que os exames e os chumbos são uma irracionalidade e um desperdício do sistema educativo. Já então a investigação tinha apresentado argumentos seguros dessa irracionalidade, agora validados por novos estudos científicos e abundantes trabalhos académicos mais recentes.
Em 2008, José Matias Alves defendeu na Universidade Católica a sua tese de doutoramento intitulada Os Exames do Ensino Secundário como dispositivos de regulação das aspirações – A ficção meritocrática, a organização da hipocrisia, e as acções insensatas. O título é por demais revelador e o véu vai-se levantando com as respostas às questões de partida que o autor se propõe analisar: “Os exames do ensino secundário são justos? As provas são válidas e as classificações fiáveis? O nível de exigência é adequado aos destinatários? Os resultados e os efeitos que produzem em todos os elementos do sistema são de molde a contribuir para o desenvolvimento das aprendizagens e para a realização pessoal, social e profissional?”
Matias Alves começou por submeter 31 professores de diferentes disciplinas aos exames de 2006 e 2007, cada prova foi classificada por 4 a 6 docentes da respetiva área curricular e as conclusões são surpreendentes: “os professores, de um modo geral, não se sentem muito bem no ofício de aluno, demoram um tempo excessivo (e alguns nem sequer têm tempo de concluírem a resolução da prova), e um número significativo de docentes (…) acaba por obter classificações problemáticas”. Matias Alves admite mesmo “a hipótese de que o resultado das provas depende mais do classificador do que do próprio examinando, o que põe em causa a validade, a fiabilidade, a confiança e a credibilidade dos exames”.
Os exames, nesta modalidade, são um instrumento de controlo arcaico, obsoleto, punitivo, irracional, exclusivo, destruidor do equilíbrio emocional de muitos jovens. São um produto da escola do século XIX agora posta à prova pelo contexto da pandemia, desorientada e caótica, sem a menor capacidade de resposta. É o carro de bois a viajar na autoestrada.
Em 2/10/2020, o jornal The Guardian publicava um texto de Simon Jenkins intitulado: “Aproveitemos esta rara oportunidade para abolir os exames…”, considerando-os um absurdo que provoca danos físicos e mentais demolidores e comparando-os aos castigos corporais banidos das escolas há 30 anos, uma prática degradante e humilhante, causadora de traumas e depressões que levam muitos adolescentes e jovens às urgências hospitalares com problemas psiquiátricos.
Porque é que não abolimos os exames, como propõe Jenkins, perguntarão. Porque os exames são uma componente essencial da organização do sistema educativo, do seu controlo, e não podemos mudar o sistema de avaliação sem mudar o modelo de organização e gestão da escola no seu conjunto. Mudar a avaliação implica mudar a escola e ainda não tivemos até hoje nenhum governo com uma visão estratégica capaz de tornar a escola no motor de emancipação do povo português e de crescimento honesto da economia. Erradicámos o analfabetismo? Sim, mas poucochinho. Não se é pobre por acaso. Uma grande parte dos portugueses são pobres, porque é pobre a escola que frequentaram e muitos deixaram de a frequentar por causa dos exames.

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