Opinião – Como a engenharia pode ajudar a resolver a pandemia

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Cerca de um ano após a deflagração da covid-19, Portugal está a viver o momento mais grave desta pandemia. Dia após dia, são batidos recordes negativos. Portugal tornou-se o país com maior número de novos casos (mais de mil!) por milhão de habitantes em todo o mundo e superou as duas centenas de mortes diárias. Os serviços de saúde estão no limite da sua capacidade. Acresce que os casos não-covid, muitos deles com doenças mais letais que a covid-19 (cardiovasculares, cancro, etc.), têm sido “preteridos”, com graves consequências na redução de exames de diagnóstico e, consequentemente, no aumento de “mortes por explicar” face à média dos anos anteriores. É um falhanço total, enquanto país.
O combate à pandemia tem sido abordado (ou pelo menos comunicado) como um assunto quase exclusivo da medicina e das ciências da vida. Por que não fazer uma reflexão sobre a pandemia do ponto de vista da engenharia? O objetivo não será “meter a foice em seara alheia”, mas sim contribuir, fornecendo um ponto de vista diferente daquele que nos tem sido maioritariamente transmitido.
A pandemia coloca dois problemas principais: 1 ) travar a propagação do vírus, e 2 ) cuidar dos doentes.
Este último, é o que mais nos choca pois o insucesso resulta diretamente na perda de vidas humanas. E cabe à medicina tentar salvar os cerca de 5% de casos ativos que desenvolvem complicações graves da doença e que necessitam de internamento – em muitos casos, de cuidados intensivos, numa luta entre a vida e a morte.
O primeiro problema, cujas consequências imediatas são menos graves ( 95% dos casos têm sintomas ligeiros, sendo acompanhados à distância pelos médicos de família) não é, no entanto, um problema secundário. Muito pelo contrário, pois ao “estancar” a transmissão do vírus pela comunidade, diminui-se o número de doentes em estado grave e reduz-se a pressão colocada aos serviços de saúde. Consequentemente, salvam-se mais vidas. Ou seja, resolver o problema 1 contribui para resolver o problema 2.
Interessa então focar a atenção no problema 1, da propagação do vírus, que pode ser entendido em dois desafios distintos: 1.1 ) de curto prazo, e 1.2 ) de médio-longo prazo.
O desafio de médio-longo prazo diz respeito à criação de imunidade de grupo, através da vacinação em massa. Esta é a melhor solução que conhecemos, enquanto humanidade, para diminuir a capacidade de transmissão de vírus, de forma duradoura no tempo. Neste capítulo, a ciência excedeu as expectativas, tendo conseguido gerar um conjunto de vacinas no período recorde de um ano. Agora, é necessário produzir em escala, distribuir de forma global e equitativa, e administrar a vacina à população.
No imediato, o desafio passa por adotar medidas que reduzam a transmissão do vírus. Este não parece ser um desafio do domínio exclusivo da medicina. É um problema complexo que só poderá ser bem entendido e, consequentemente, bem resolvido através de uma abordagem transdisciplinar.
Especialidades como a engenharia urbana e de edifícios podem contribuir, levantando e dando resposta a perguntas como:
• Quais as características dos edifícios em que habitamos e em que trabalhamos – que condições térmicas e de ventilação há nesses edifícios? Que edifícios têm condições adequadas e quais não têm? Como adaptá-los para que passem a ter, minimizando o risco de exposição ao permanecer nesses locais?
• Quais os padrões de mobilidade das populações – de onde para onde se deslocam, por que motivos (trabalho, lazer, compras) e que meios de transporte utilizam? Que deslocações poderão ser evitadas? E como fazer as restantes, em condições que minimizem a transmissão?
• Faz sentido usar métricas de risco como o nº de novos casos por cem mil habitantes, num país como Portugal, em que 92% dos municípios têm uma população residente total inferior a este valor (dados censos 2011 )? Note-se que num município com dez mil habitantes (o que corresponde a mais de 37% dos municípios portugueses), bastam 48 casos – que podem estar concentrados num lar ou noutro local facilmente delimitável – para todo o município ser classificado como de risco muito elevado (critérios ECDC).
• Faz sentido usar a população residente nesta análise? As grandes cidades atraem todos os dias milhares de viagens de municípios vizinhos. Nestes locais, a interação humana será significativamente diferente do que um indicador baseado na população residente pode revelar.
• Será adequado fazer uma análise município a município ou região a região? As pessoas deslocam-se entre municípios, sobretudo para os mais próximos e maiores (mais emprego e comércio), podendo “levar” o vírus consigo. Será que outras unidades territoriais, intermédias mas mais homogéneas, como por exemplo as Comunidades Intermunicipais (CIMs), não captarão melhor estes efeitos?
Atualmente, com a situação descontrolada, estamos novamente todos sujeitos a medidas de último recurso como o recolhimento obrigatório. As perguntas e respostas acima teriam sido úteis no ano que se passou. Poderão ainda ser úteis no futuro, para que as medidas a adotar passem a ser mais certeiras, minimizando a transmissão do vírus e, ao mesmo tempo, provocando o menor impacto económico possível – um equilíbrio que as medidas duras e “cegas” não conseguem.

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