Opinião – Da cultura às culturas nas suas dinâmicas e tensões

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Quando falamos de cultura, há três tentações em que facilmente incorremos e que acabam por desvirtuar a sua realidade viva:1) a essencialização da cultura, como se ela fosse uma coisa de contornos estáveis e fixos; 2 ) a sua espiritualização, como se a cultura fosse apenas o domínio das ideias forjadas pelo espírito humano; e 3 ) a tentação da unidade, como se fosse possível traduzir o fenómeno que lhe corresponde através de um substantivo no singular. Mas ensina-nos a história que a cultura é antes um processo e que a sua prática implica também uma materialidade própria que passa por corpos, artefactos e realidades físicas. E apercebemo-nos, no estudo desse processo, de que a cultura no singular é um mito e uma abstração e que só o seu uso no plural dá conta da riqueza das práticas culturais e das suas expressões.
Da minha parte, prefiro falar mais de culturas do que de cultura e, melhor ainda, mais do que utilizar o substantivo cultura, prefiro a expressão adjetivada de dinâmicas culturais.
As culturas e os seus processos têm mundo e mundos e vão criando mundo e mundos. Não são fulgurações meramente espirituais do ser humano, fora do espaço e do tempo, mas emergências sempre em contextos históricos específicos, que transportam representações, sentidos e valores territorialmente situados, porque se enraízam na história concreta dos seres humanos, e todo esse dinamismo caracteriza também as expressões, tanto mentais, quanto materiais, em que se concretizam. Por isso, só uma conceção verdadeiramente ecológica de cultura, atendendo ao mesmo tempo às suas especificidades e aos respetivos ecossistemas, pode dar conta dos fenómenos e das atividades culturais.
Desta inscrição plural das dinâmicas culturais, a que se junta a diversidade dos seus sujeitos (público/privado, individual/coletivo, pessoal/empresarial, criativo/administrativo, entre outros) decorre a sua natureza tensional e contraditória. Mas a resolução das suas tensões não está na anulação de um dos polos, mas na capacidade de os equilibrar criativamente. Sublinharia, assim, a tensão entre estar e caminhar (a fixidez e o movimento), passado e futuro (a cultura como tradição e memória e como invenção do novo), unidade e multiplicidade (primado das culturas maioritárias e dinâmicas multiculturais, com o reconhecimento de que não há culturas puras, mas todas são resultado de processos de hibridização e de mestiçagem), ou efémero e estável (a liquefação da cultura e a sua institucionalização), a que juntaria as decorrentes dos diferentes modelos de política cultural, como a tensão entre o centro e a periferia (subjacente aos processos de concentração ou desconcentração cultural), criação e consumo (apoio à produção e à criação ou ao acolhimento e ao consumo), local e translocal (abertura ou fechamento territorial) e entre o económico e o cultural (primado de efeitos económicos ou intrinsecamente culturais).
Apenas mais duas notas. Primeira: para além de ideias e materialidades, a cultura é também emoção e paixão, o que faz dela um jogo de cumplicidades quentes e afetivas. Segunda: a cultura só se realiza com a capacidade de ressonância e, por isso, longe de uma atitude inquisitória, exige a humildade como virtude para vibrar com as expressões do mundo e dos outros, pois todas as culturas são incompletas como finitos são os seus sujeitos.

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