Opinião: Eu vigio, tu vigias, ele vigia

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Sem querer, um homem que durante anos perseguiu o seu projeto falhado, acabou por prever o futuro. Nunca chegou a sabê-lo, porque o futuro veio, como muitas vezes, fora de tempo. Demorou duzentos anos a chegar. Duzentos anos são, para a história atual, anos de mais. Quando transpomos os anos para séculos, o tempo passa a ser irredutível, insofismável.
Naquele tempo em que o londrino Jeremy Bentham viveu ( 1748-1832 ), ele foi jurista, filósofo e várias outras coisas. Ao viajar até à Rússia Branca (hoje Bielorrússia), para se encontrar com o seu irmão, teve o vislumbre de um modelo arquitetónico que permitia a um único vigilante observar todos os prisioneiros sem que estes pudessem saber que estavam a ser observados. No seu projeto, ninguém ficaria fora do raio de visão do guarda.
Lembra-se do programa televisivo Big Brother? Foi Bentham quem o inventou, há duzentos anos, mesmo sem saber. Mesmo num tempo em que a televisão não podia sequer ser imaginada.
O modelo, chamado Panóptico, consistia numa arquitetura em círculo, com uma torre ao centro e celas em volta. Poderia aplicar-se a tudo o que o regime precisasse de vigiar, como manicómios, escolas, prisões… Os presos não iriam saber se estavam ou não a ser vigiados, por isso agiam como se estivessem, adotando o comportamento desejado pelo vigilante. No fundo, a finalidade era mesmo essa. E todo o modelo era entendido como a utopia do encarceramento perfeito.
Anos depois – aliás, duzentos anos depois – o filósofo francês Michel Foucault desenterrou este sistema para conectá-lo a uma nova interpretação face à vigilância que hoje existe, baseada num sistema social em que qualquer segredo é suscetível de ser conhecido, acabando com a privacidade e com a individualidade dos cidadãos.
A atmosfera digital a que estamos submetidos tem-se precipitado vertiginosamente, irradiando meios de observação e controlo, permitindo a vigilância de todos, em todo o lado, a todo o instante. Renasceu a utopia malévola de um círculo onde todos somos vigiados.
Levantar dinheiro numa caixa multibanco, passar na via verde, fazer uma chamada telefónica, usar uma app que monitoriza o tempo e o percurso enquanto corremos, ter no carro um geolocalizador de veículos, usar uma rede social, entre muitos outros atos “normalizados”, seduz-nos, ao mesmo tempo que deixa um rasto irrevogável, escancarando as portas à devassa da nossa privacidade. Alguém fica a saber sobre nós muito mais do que provavelmente estaríamos dispostos a dizer.
A vigilância em rede elevou o nível de controlo a outro patamar. Rapidamente passámos do Big Brother para o conceito de Little Brothers. Há uma espécie de olho digital que nos persegue, violando a esfera privada dos cidadãos, colocando pequenos olhos digitais na nossa vida, utilizando os nossos próprios computadores e telemóveis. Toda a informação é processada e vazada numa imensa rede de distribuição. Não sabemos quem nos escuta, quem lê os nossos e-mails, quem nos observa. A vigilância tornou-se, inclusivamente, mais dinâmica. Passámos a vigiar-nos uns aos outros quase sem darmos por isso.
Tudo isto é tremendamente inquietante, uma vez que estamos enjaulados nos nossos pequenos teatros, sozinhos mas visíveis, observando também os outros que se encontram nas suas próprias gaiolas. Este modelo não está apenas a habituar as sociedades a um regime de vigilância, normalizando que todos possamos ser vigiados, está também a criar uma cultura em que as pessoas se vigiam umas às outras.
Uma imensidão de vigilantes e processadores de informação registam o nosso comportamento para sempre. Involuntariamente passámos a integrar bancos de dados que nos algemam para toda a vida. Imaginem o que poderá um Estado autoritário fazer com isto. Imaginem o que será esta informação nas mãos dos novos partidos extremistas. Estaremos de tal forma sedados que não percebamos que deixámos de ter liberdade e que já não há lugar no mundo onde nos possamos esconder?

Pode ler a opinião de Bruno Paixão na edição impressa e digital do DIÁRIO AS BEIRAS

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