Opinião: Fora de tempo

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“Longe vão os tempos”. Pronunciamos este bordão e os tempos de cada tempo voltam a ligar-se a nós. Como se aguardassem por um contacto. Intemporais. Como âncoras de memória que içamos, vendo movimentar as águas de um tempo esquecido em si mesmo. Como se uma aragem nos trouxesse de novo o tempo daqueles tempos.
Quem diz “longe vão os tempos” tem a memória povoada, repleta, habitada. Tem do mundo uma impressão esculpida que confronta com os tempos de hoje. Longe vão os tempos em que num Portugal deslumbrado com aquela caixa mágica colocada na sala, em frente ao sofá, uma família inteira, três gerações presentes, se sentava muito junta, depois da hora do jantar, para assistir à telenovela, liquefazendo-se de afetos por dentro.
“Gabriela, Cravo e Canela” apareceu por cá num longínquo 16 de maio de 1977. Foi há muito tempo. Nas nossas televisões predominava o preto e branco. Sónia Braga, a atriz que protagonizava Gabriela, era um vislumbre do encantamento televisivo.
O sino das igrejas, que marcava as horas certas, era destronado por essa maravilha da comunicação, que nos chegava às nove em ponto. A música elevava-se mais imponente, alertando para o começo de cada episódio: “Eu nasci assim, eu cresci assim e sou mesmo assim. Vou ser sempre assim. Gabriela”. Acho que naquele tempo não havia audiências. Havia espetadores. Nem havia concorrência. O tempo daqueles tempos corria mais devagar. Eu não sou do tempo dessa novela. Sou do tempo de outras novelas a seguir. Mas sempre ouvi falar dela. O seu sucesso acabou por ditar modas, desde os penteados à escolha dos nomes e até à linguagem usada.
Naquela primeira versão da novela falada em português do Brasil, no linguajar musicado dos brasileiros, de pele torrada e gerúndios na voz, ficou célebre a cena em que Gabriela subiu de vestido a um telhado. Aquela imagem que causou bulício no mundo masculino, mostrava, de um ângulo generoso, o momento em que Gabriela se elevou, deixando vislumbrar, por descuido, muito mais do que a sociedade estava acostumada a ver.
Muito foi dito sobre essa cena, naquele tempo. Todos viram. E os que não viram ficaram a imaginar, já fora de tempo. No dia seguinte os transportes públicos transferiam diálogos sobre os temas novelescos. Por isso, muitos estudiosos afirmam que as novelas fazem indubitavelmente parte da nossa identidade cultural, por cunharem o sentimento de identidade coletiva.
Entretanto, as novelas foram prescrevendo. O termo perdeu o seu tempo. Os ecrãs passam hoje outras novelas, chamando-lhes “séries”. São séries internacionais. Assistimos quando queremos. Deixamos no “pause”. Passamos os anúncios. Somos do outro tempo e deste tempo também. Não há mal nenhum nisso. A gente acostuma-se a tudo. Hoje, nos tempos de hoje, falta-nos o tempo. Nunca há tempo. Nem o tempo chega a tempo. Adiantamos os relógios para ver se ludibriamos o tempo. E o tempo, neste tempo cortado em finíssimas fatias, mede-se em restos de tempo, porque o que passou não conta mais.

Pode ler a opinião de Bruno Paixão na edição impressa e digital do DIÁRIO AS BEIRAS

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