Opinião – Caminho errado

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É muito estranho que os deputados, sejam eles apoiantes do Governo ou da oposição, aprovem alterações ao regimento da AR que limitam a sua capacidade de escrutínio. O caminho seguido desde o virar so século foi o de reforçar os direitos das oposições, através de novas formas de controlo do Governo, nomeadamente o debate mensal com o PM, a sessão quinzenal de perguntas de âmbito setorial ao Governo, e a atribuição de direitos potestativos aos vários grupos parlamentares para a realização de debates de urgência.
Colocar este caminho em causa, não faz o menor sentido. Por um lado, retira credibilidade aos vários políticos que argumentaram com uma nova centralidade da AR, por exemplo com a formação da “geringonça”, por outro lado, afirma que são vazios os discursos que visam reformar o sistema político, tendo por base a transparência e o escrutínio do Governo.
Mas, mais grave do que isso, é os deputados aprovarem que o que fazem na AR deve ser menos frequente, como se o escrutínio e a prestação de contas não fossem uma obrigação básica de uma democracia saudável, mas antes um aborrecimento e um ato proforma, sujeito a gritaria e pouco esclarecedor.
No fundo, e em poucas palavras, os deputados estarão a dizer que servem para pouco, que este regime está esgotado e que eles se sentem impotentes para o reformar, pelo que até diminuem a sua atividade de escrutínio.
Há somente um argumento que merece ponderação cuidada que é o da eficácia. Isto é, alguns dos defensores desta alteração argumentam que os debates quinzenais eram pouco eficazes pois, no essencial, o PM não respondia às perguntas mais incómodas e as intervenções dos vários partidos tinham como objetivo essencial fazer os títulos de abertura do telejornal ou dos jornais do dia seguinte. Reconhecendo razão a esse argumento, a solução obrigaria, no entanto, a medidas bem mais drásticas. A saber:
1 ) Limitação dos mandatos dos deputados: ser deputado não é uma profissão, mas antes uma missão temporária de serviço-público;
2 ) Capacidade de avaliar e intervir em casos de conflito de interesses, colocando o foco numa maior fiscalização e responsabilização da atividade política;
3 ) Garantir uma maior independência política de quem conduz os trabalhos na AR: de facto, quando se torna evidente que alguém está a fugir a perguntas, não responde e não esclarece, deveria ser alertado por quem conduz os trabalhos, de forma a exigir o completo esclarecimento do que é perguntado. Permitir que as respostas não sejam completas, é desmerecer o debate. Por outro lado, o mesmo deveria acontecer relativamente a quem faz perguntas. A condução dos trabalhos deve garantir que são feitas de forma leal, sem subterfúgios, com respeito pelos membros do Governo, de forma a que possam merecer a máxima atenção e seriedade na resposta. Não garantir isto, atuando na conferência de líderes, dirigindo mensagens ao Governo, etc., é essencial para credibilizar os debates e defender o interesse nacional.
4 ) Medidas claras que permitam envolver os cidadãos na atividade da AR, reforçando a perceção pública da importância da AR, dos seus procedimentos, prazos e forma de gestão;
5 ) Reforçar a importância e solenidade do debate anual do Estado da Nação, equiparando-o ao estatuto de Moção de Confiança, de forma a que seja encarado com toda a seriedade. É muito importante que todos os agentes políticos interiorizem que a prestação de contas aos cidadãos é um dos atos mais importantes em democracia, devendo ser tratado pelo Governo e pela oposição com a máxima seriedade.
No essencial, nada disto foi feito, ficando os deputados na ingrata e algo indigna situação de terem diminuído, por ação própria, as suas possibilidades de escrutínio do Governo e de poderem dar conta aos seus eleitores, de forma cabal, como é sua responsabilidade, de como são geridos os interesses de todos e de como eles verificaram a ação do Governo. A sensação de desânimo e impotência é, consequentemente, algo impossível de disfarçar. Os regimes democráticos ficam em perigo quando a esperança desaparece, quando fica bem clara a incapacidade de os reformar e quando os cidadãos consideram que o voto é inútil: o crescimento galopante da abstenção é sinal disso mesmo.

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