Ficas a saber, George Floyd, que a “opinião pública” se comoveu. Nem que tenha sido naquela janela de 90 minutos em que Hollywood a ensinou a condensar as emoções. É claro que a “vida real” é sempre mais emocionante do que a ficção declarada, já que não é o mesmo assistir ao Chuck Norris a fazer voar um vilão OU ver aquele polícia de Minnesota a esmagar-te o pescoço, insensível à repetida queixa de não poderes respirar.
A “opinião pública” é uma máquina de devorar realidades, George Floyd. Recordará o teu nome apenas o pouco tempo que levar a distrair-se com as “notícias” dos males de um outro lado do mundo. Entretanto, as estatísticas referem que os 12% norte-americanos “negros” têm 2,5 vezes mais probabilidade de serem mortos pela polícia do que os 70% “brancos” que repartiam contigo o chão. Concidadãos teus puseram Minnesota a ferro e fogo, num apenas-alívio da pressão da panela. Falta-lhes organização, que é a mais temível das armas das massas, capaz de ir mais longe com menos destruição. Porque, quando acalmar a indignação, o que ficará na memória desse pobre eleitorado é o Twitter de Trump, comentando os distúrbios nas ruas: “não posso ficar parado a ver acontecer isto na grande cidade americana de Minneapolis. Uma total falta de liderança. Ou o Mayor da esquerda radical, Jacob Frey, começa a agir e controla a cidade, ou enviarei a Guarda Nacional e faremos o trabalho”. Estamos no tempo das “lideranças fortes”, George Floyd. As que levaram a ordem ao Iraque, à Líbia e ao Afeganistão; as que querem levar a ordem a Cuba e aonde mais se procure acabar com a desigualdade de que também tu, George Floyd, eras um produto direto – desde que os teus antepassados foram descarregados nessa terra.
“I can’t breathe” são palavras tuas e são as dos que morrem no Mediterrâneo e nos campos de concentração da União Europeia – todos vítimas de uma ordem mundial centenária que consegue fazer das suas vítimas os seus eleitores. Mas só enquanto ganha eleições, George Floyd. Quando as perde – mesmo que as regras sejam as suas – segrega bolsonaros, jeanines e guaidós, e maastrichtes disciplinadores. E até a tão celebrada “liberdade de expressão” (a tal que é cotada na Bolsa) soube agora que Donald Trump assinou uma ordem executiva que limita o poder das redes sociais (no país campeão da liberdade, imagina!).
Entretanto vamos ligando as televisões, confiados ainda de que a verdade é ali a atmosfera natural. Há até quem confie na encenação que omite que mesmo os crimes de rua são, na sua imensa maioria, resultado do crime maior da construção de insultuosas fortunas que custam milhares de milhões de seres humanos. E outras vítimas como Assange, Snowden e todos os assassinados por defenderem a verdade não cotada na Bolsa.
Quando o fogo se extinguir nas ruas de Minnesota – e a América retomar o desígnio de ser “great again” – a barbárie retomará calmamente conta das gerais atenções, espalhando sanções e ofensas, invasões e bases militares, presidentes para as suas conveniências e governos para os seus serviços.
Mas anima-te, George Floyd, porque nos altos assentos aonde subiste vais encontrar Eric Garner, a quem roubaste as últimas palavras, um Galileu que morreu confiante de que “ela move-se” e um Karl que deixou dito “uni-vos”. E Clarice Lispector que, ao dizer “já vou deixar registado que se a Idade Média voltar, eu tô do lado das Bruxas!”, nos recordou o lado onde devemos estar.