A Ermida de São Roque (de Montpellier) foi mandada erguer no planalto da Colina de S. Roque, fora das portas da cidade, onde havia sido construído um cemitério para receber as vítimas da “peste”. Precisamente no mesmo dia, a 24 de março de 1505, no planalto oposto, na Colina do Castelo, o filho de Afonso Dallboquerque escolhera para jazida dos ossos do seu progenitor, uma capela na igreja do Convento de Nossa Senhora da Graça de Lisboa. São Roque é o Santo protetor contra a Peste, o motivo inicial desta prosa, quando afiei o lápis sobre a curva de expansão do vírus SARS-CoV-2. Não trazia nada de novo a quem sabe um pouco de matemática e um pouquito das leis da epidemiologia. Basta reler Albert Camus, do meio do século passado, mas tão atual: “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada […] para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”
Afonso de Albuquerque foi um dos nossos grandes heróis. Foi o segundo europeu a fundar uma cidade na Ásia (o primeiro foi Alexandre, o Grande) e o criador de uma sociedade luso-asiática. Pioneiro na globalização, foi o génio militar de quem herdámos a loucura. Foram muitos os episódios em que o “Leão do Mar” se deixou tomar pela grandiosidade do seu delicioso ‘romantismo’ e perdeu a noção do que estava a fazer: como quando, na baía de Ormuz, ao ficar cercado por 160 barcos de guerra persas, estando ele ao comando de seis naus a cair aos bocados e uma tripulação esfarrapada e subnutrida, ordenou os seus homens o aprumar com as melhores vestes e, de seguida, mandou uma mensagem aos Ormuzinos, mais ou menos nestes termos, “Rendam-se!”. Não o fizeram. Perderam oitenta barcos e 3.000 soldados, contra 30 feridos ligeiros portugueses. Revelador!
Meio milhar de anos depois do estratega da miscigenação, o que aprendemos da globalização? Nada. Ensinámos os chineses que a terra era esférica mas desconsiderámos que, na aldeia global, tudo se propaga explosivamente, inclusive a boçalidade que agora tomou conta de uma pandemia de illuminatus que, ora debitam números sobre a capacidade de oxigenoterapia a doentes com pneumonia intersticial bilateral, ora resolvem problemas combinatoriais, ora antecipam múltiplos cenários macroeconómicos. A verdade nua e crua?
Na madrugada do dia 2 de março, meio Portugal acordou com uma síndrome e foi-se ao insulto por um quinhão de papel higiénico (enfim, o medo é inflamável e nunca foi bom conselheiro). A outra metade? Ou ficou de peito firme, a fazer honra à encantadora falta de noção do vice-Rei da Índia Portuguesa, ou começou a preparar-se para a ‘peste’. Quando chegar a hora da verdade, e espero que seja tarde, é com estes últimos e com S. Roque que iremos contar. Será através destes que daremos razão a Rieux: “há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar”.
Não temos alternativa, o desamparo não nos une, desta vez precisamos mais do que a responsabilidade histórica e a esperança Divina: “Ahora debemos dejar de lado nuestras diferencias. Debemos unirnos en torno a un mismo objetivo: superar esta grave situación. Y tenemos que hacerlo juntos; entre todos; con serenidad y confianza, pero también con decisión y energia”. Afinal a sina deste lápis é o apelo à capacidade individual da razão sã. Ademais, para que serve esta quarentena, se não tiver espaço para o silêncio introspetivo e uma oportunidade para reiniciarmos o crescimento enquanto humanos?
A implosão do Eu: “Este virus lo paramos unidos”. Quando os neurónios esquizofrénicos quiserem tomar conta da racionalidade, e vão ter muitas oportunidades, questionem-se sobre a pegada que querem deixar na breve passagem terrena: se é olhar os filhos a brilharem nos olhos das mães, honrar Albuquerque, ou como Cavaleiros da Triste Figura, a pilhar por papel higiénico?
Pode ler a opinião de Paulo Simões Lopes na edição em papel e digital desta terça-feira, 7 de abril, do Diário As Beiras