“O problema da liberdade foi o que sempre mais me preocupou. (…) Sou pela liberdade, sou contra a opressão, e isto é simples, é humano, é evidente – disse! E não me chateiem mais”. As palavras são de Vergílio Ferreira, mas hoje faço-as minhas porque dizem tudo o que me apetece gritar a propósito da mais recente polémica sobre as comemorações do Dia da Liberdade na Assembleia da República.
Tenho, como muitos, desde o início desta discussão a certeza de que é preciso festejar Abril, celebrando a democracia e a liberdade e honrando a valentia de quem no-las deu há 46 anos atrás. E, já que são muito poucos os portugueses que assim não pensam e sentem (o que, num estado democrático, não sendo negligenciável, não deixa margem para quaisquer dúvidas), era o que faltava que, a qualquer pretexto, não nos entrassem os cravos pela casa adentro!
Ora, assim sendo, resta apenas a questão do modo dos festejos, que, ao contrário do que gritou Ferro Rodrigues na passada semana ao deputado João Almeida do CDS, era merecedora da salutar discussão que a vivência democrática nos permite.
Estou à vontade com o assunto, desde logo porque discordo absolutamente do deputado centrista e, como já disse, entendo que a dita celebração deve ser feita na Casa da Democracia, tendo em conta os especiais desafios que a decretação do ‘estado de emergência’ nos impôs e que nos devem fazer mimar a democracia mais do que nunca (ainda mais quando, para combater a ameaça que nos atenta, vamos sendo aliciados com tentadoras e perigosas ‘soluções milagreiras’, como é o caso das aplicações tecnológicas que permitem a geolocalização e a detecção de movimentos de eventuais infectados).
Concordo, pois, com os festejos e concordo até que se façam em São Bento, como quase sempre sucedeu.
O que eu já não tolero é o enfado do Presidente da Assembleia da República, que constantemente nos impõe um ar desgostoso, de quem não convive bem com as discordâncias que a democracia permite e que dão mote a um tom cada vez mais malcriado e arruaceiro, próprio de um vulgar capataz de estrebaria. Serve-se da democracia, que visivelmente lhe merece pouco respeito, utilizando-a como um verdadeiro chicote com que vai intimidando os seus opositores a seu bel-prazer.
A arrogância do dito senhor arrelia um santo, e, por isso, a mim, que de santa pouco tenho, enxofra solenemente e faz lembrar as sábias palavras do escritor beirão.
Que alguém, por favor, lhe diga que a democracia que Abril nos trouxe não pode, pela sua natureza, ser escrava de uns caducos senhores ou dos seus bafientos espartilhos, e que, ao invés, há-de ser livre e parideira, pois se, em alternativa, a fizéssemos estéril para lhe evitar crias que a envergonhassem, acabar-lhe-íamos com a raça num ápice.
Ora, não podendo viver atada, agrilhoada ou amordaçada, deve a democracia girar de mão em mão, de boca em boca, de coração em coração, crescendo selvagem e despudoradamente no seio de todos… e até mesmo nos tais colos que a desonram e destratam.
E, sendo dever de quem preside os trabalhos do Parlamento respeitar todos os portugueses ali representados, os festejos de Abril devem ser dirigidos a Portugal inteiro, que facilmente compreenderia a ausência de convidados protocolares, mas que não poderá dispensar uma mensagem de pertença a todos aqueles que têm a sua liberdade diminuída em prol da saúde do País.
A mim, apetece-me berrar-lhe que a democracia e a liberdade a todos cabem, inclusive a todos os portugueses a quem já falta o pão e a todos os outros que não podem despedir-se dos seus entes queridos, em vida e nem em morte, e que precisam de sentir que esses supremos sacrifícios são justificados e valem a pena.
Felizmente, ainda antes do dia da festa, a democracia continua a parir homens livres. Ramalho Eanes, por exemplo, mostrando mais uma vez a nobreza do seu carácter, irá por “responsabilidade institucional”, apesar de discordar do modelo das comemorações.
E, se, pelo menos a ele, ninguém acusar de “fascista”, terá vencido o espírito de Abril!
Pode ler a opinião de Filomena Girão na edição digital e impressa do Diário As Beiras