Mesmo que o medo nos venha orientando agora os passos (ou, antes, a falta deles), acreditamos que haverá amanhã. E que amanhã regressaremos aos abraços, aos passeios no Choupal, ao mais arrojado sonho de descer os Champs Élysées. E que retomaremos as nossas vidas, umas melhores que outras. Um amigo grande dizia-me ontem ao telefone que tem saudades dos perdigotos, e de os conciliar para sempre com o rumor das copas das árvores que tem sido a sua companhia permanente. Não chegaria tão longe, mas também eu prefiro o escrúpulo sanitário ao temor.
Suspenso nesta bolha de cautelas, na deliciosa companhia familiar, debruço-me sobre as sortes dos demais, que me chegam pelas notícias e, sobretudo, pelos relatos dos amigos. Entre os meus há quem esteja em segurança, quem esteja infetado, quem tenha perdido o emprego, quem esteja sozinho em casa (aos nossos vamos nós valendo). E até quem esteja na Ásia distante e tenha decidido lá ficar para ajudar os precisados. Este é o segundo desastre que atravesso, depois da governação de Passos-Portas, e adivinho já o ressurgimento das lojas de compra de ouro, mal o surto desacelere, convertendo os brincos das avós em prestações ao Banco.
Este ainda não é o tempo dos Bancos. Pois se até um dos seus defensores acaba de dizer na TV que “se a Banca apresentar em 2020 e 2021 lucros avultados, esses lucros serão uma vergonha e uma ingratidão para com o povo português”. É da ocasião. Logo virá um ulrich qualquer descansar-lhe os cuidados sob a forma de “ai aguenta, aguenta!”, e tudo voltará à ultrajante normalidade. Ainda não é o tempo da Banca, mas tudo se encaminha para que o venha a ser.
Não tem de ser assim. Não está escrito em nenhuma tábua divina que os interesses da Banca tenham de prevalecer sobre a vontade dos povos. A Banca não produz. E quando tem préstimo limita-se a ser ferramenta num complexo mecanismo de transformação do mundo em que o Trabalho – e só o Trabalho – é motor. A Banca não tem de ser o vírus das economias, habilmente convertida em ingrediente essencial da sopa de desiguais que leva o nome paradoxal de União Europeia. Não se entende, por isso, o temor de Rui Rio, expectante, pelo que se vê, acerca do comportamento da Banca. A Banca só é imprevisível quando o Estado assim a quer (como na CGD).
Este já é o tempo das falências das pequenas e médias empresas, que precisavam agora de uma Banca pública, de uma EDP pública, de uma Galp pública – tudo ferramentas essenciais ao relançamento da economia fora das regras do mercado; e é o tempo do desemprego, a precisar de uma Segurança Social robusta e defendida dos interesses privados; e também o tempo que revela as debilidades do SNS, ainda assim a porta que se abre a quem precisa (a colocar na ordem do dia a necessidade de medidas que interrompam o financiamento público dos operadores privados). Estes são os dias em que muitas instituições aproveitam o estado de emergência para o despedimento abusivo, às vezes com recurso à coação e à ameaça, para que os trabalhadores assinem declarações de aceitação do seu próprio despedimento. São os dias dos cortes nos salários, dos abusos horários de trabalho, de tentativas de impedir o cumprimento da lei nas medidas de apoio aos trabalhadores com filhos, do incumprimento de regras de higiene, segurança e saúde no trabalho, expondo os trabalhadores a riscos inaceitáveis. São os dias de usar o biombo musculado, outra vez o “ai aguenta, aguenta!”, como quem usa o “estado de emergência” para perceber até onde se pode esticar. E sem sindicatos.
Estamos por nossa conta. Porque, como de novo está à vista, da “europa-connosco” nem bom vento (que só soprará se for para salvar a Banca) nem bom casamento. A atitude hostil dos consortes ricos prova que casamento nunca houve. Apenas um arranjo de conveniência (mas não a de Portugal).