Lembro-me daqueles tempos de criança em que costumávamos olhar de soslaio para um miúdo petulante e deveras irritante sempre que ele aparecia com ar gabarolas a dar opinião sobre tudo. Tem a mania, dizíamos. Mas havia também quem o descrevesse como aquele que pensa que tem o rei na barriga. Olhando para a camisola sempre impecavelmente limpa, não se via coroas douradas nem ceptros. Eu ficava a pensar no significado de se ter um rei na barriga.
Entre outros dissabores, ele costumava estragar os nossos jogos de futebol, impedindo-nos de colocar pedras no largo para a marcação das balizas. Umas vezes porque as pedras não eram dali, outras porque as pedras estorvavam-lhe a caminhada, e outras ainda pelo raio que o partisse. Encontrava sempre forma de arruinar a brincadeira e ainda de ter uma justificação solene para tal. Falava de forma altíloqua, assim como… quem tem o rei na barriga.
A importância que presumia ter e o deslumbramento consigo próprio turvavam-lhe a visão. Víamo-lo como uma figura repelente, que se colocava a si próprio num castelo distante e provavelmente infeliz, longe do momento que devia viver, longe da liberdade de ser e de estar em igualdade, sem sobranceria, não se levando tão a peito. À noite, todos regressávamos a casa, para as nossas famílias e dormíamos do mesmo modo. No fim do jogo, o rei e o peão voltam para a mesma caixa…
Mais ou menos por volta de finais do verão, recordo-me de estarmos a pôr as tais pedras à distância de três passos cada uma, de levarmos os pés de rojo para a marcação da área e de já termos composto as duas equipas, com uns quantos jogadores para cada lado, quando ele apareceu. Mas aquele não era um jogo qualquer. No vai-e-vem das férias, das idas e dos regressos, aquele era o último jogo em que iríamos estar todos juntos. Era, por isso, mais importante que a final da copa do mundo.
Vimo-lo aproximar-se, de mãos apressadas. Baixou-se junto a uma das pedras e, antes que pudesse alegar o primeiro argumento, choveu-lhe logo uma mão em cima. Calma, estava só a ajeitá-la, não era para a tirar do sítio, disse-me com voz inerte e olhar de carneiro mal morto. Vê mas é se queres cuspir o rei que trazes na barriga, respondi-lhe. Ele não percebeu patavina e eu, naquele dia, tive a certeza de que rei nenhum nos poderia dobrar. O meu republicanismo havia ficado bem esclarecido e ainda hoje os meus companheiros recordam a história sempre que nos juntamos.
Como numa cifra secreta entre nós, continuamos a codificar conversas com alusão ao tal rei, sempre que um de nós quer referir-se a um falsário que não tem coroa nem ceptro mas se acha soberano e procura converter os outros em plebe. Não deixamos que ninguém “reine” connosco. Confesso que as conversas são deleitosas, sobretudo porque nos transportam para o mais sincero e visceral modo de agir, aquele que é próprio daquelas crianças de aldeia que éramos nós, crescendo uns com os outros, como mastros da mesma embarcação, aprendendo a vida feita como as nossas balizas, de pedras, sobre um campo pisado que, tal como connosco, endurece quando o calcam.
6 de Março, 2020 at 15:39
Opinião – O rei na barriga
Posted by Opiniao