CAPÍTULO III – O MEU MUNDO DE INFÂNCIA
Para entenderem um pouco acerca de quem eu era e como era, o meu nascimento foi complicado porque a minha mãe achou que devia comer muitos iogurtes para eu nascer robusto. E nasci robusto com quase cinco quilos e fruto de um parto caseiro. Felizmente acabou tudo por correr bem e a minha mãe sobreviveu. No entanto, e segundo a minha mãe, fui um dos bebés mais horrorosos que alguma vez viu na vida.
Bem-vindos ao mundo do “Tangerinas”. Era assim que toda a gente me chamava antes de me mudar para Coimbra. A razão de tal alcunha é fácil de entender: porque adorava tangerinas, devorava tangerinas, umas a seguir às outras.
Com cerca de dois anos bati no meu pai, mas ele estava a pedi-las, discutia com a minha mãe, cada um sentado na sua cadeira e eu, chateado, fui junto do meu pai e dei-lhe uma enorme bofetada e fugi para o colo materno. Tamanha foi a surpresa que nada me aconteceu e a discussão acabou por aí.
Quando eu tinha dois anos e meio, o meu pai voltou a apanhar, dessa vez não sendo eu o agressor mas fui a causa. Estávamos em casa da minha avó paterna, todos sentados à mesa e eu recusava-me a almoçar, numa birra típica de criança, ele discutia comigo e ralhava-me de tal forma que, num determinado momento, a minha avó, já saturada, resolveu dar um tabefe no meu pai.
Houve ali seis meses da vida marcados por uma grande violência doméstica contra ele, um homem que se veio a revelar mais tarde um excelente líder e uma boa pessoa, mas depois eu também apanhei excelentes e justificadas tareias. Uma delas foi quando, a brincar com a garotada da rua, achei que a antena interior da televisão lá de casa tinha o formato de uma excelente metralhadora, e quando há guerra entre índios e cowboys, não há nada melhor que apresentarmo-nos no cenário de combate com artilharia. E foi isso que aconteceu!
Apesar de ter ganho a guerra, o que é certo, é que a minha arma letal partiu-se em várias e ficou completamente inutilizada, inclusivamente para cumprir o seu destino de captação do sinal de televisão. Ainda tentei disfarçar os estragos, mas quando chegou a casa, já de noite, e quis ligar o aparelho, olhou para a televisão e depois para mim em tom acusador, e aí apercebi-me que o meu progenitor tinha passado para o lado do inimigo! E ao inimigo nada se confessa, mas depois de alguma tortura física e psicológica tive que admitir que tinha sido eu, mas que tinha agido por uma boa causa mesmo que ele não a compreendesse.
Os meus pais não eram de me baterem, era mais uma palmadinha correctiva, mas a segunda mais brilhante tareia que apanhei foi também por causa dos índios. A casa onde eu vivia era uma espécie de moradia com um enorme quintal. A moradia tinha dois pisos, onde no rés-do-chão habitava outra família e a minha no primeiro andar. Na altura o meu irmão já existia, e a família que vivia no rés-do-chão também tinha duas crianças mais ou menos da minha idade, que sem dúvida faziam parte dos índios e, como tal eram meus inimigos. Um dos entretenimentos que eu mais gostava de praticar quando estava em casa, era o de encher pequenos baldes de água, colocar-me na varanda à espera que os meus queridos vizinhos aparecessem para depois lhes despejar com o conteúdo cabeça abaixo. Eventualmente estava horas à espera mas pensava eu, valia sempre a pena, até ao momento em que eu me apercebi que eles obtinham muito gozo no banho que eu lhes proporcionava. Afinal, aquilo não era só um divertimento para mim, mas também um imenso prazer para eles, e nem sequer faziam queixas aos pais. Assim, tive que modificar a estratégia, e em vez de vários baldes de água, resolvi agir com uma bisnaga de lixívia, e o resultado final foi a origem de uma merecida sova. Para além de ter estragado a roupa às crianças, atingi os olhos de um deles, a gritaria foi imensa e foram levados de emergência para o hospital. Para além de mais, revelaram-se delatores.
A terceira magnifica tareia que apanhei em miúdo foi completamente injusta e vou passar a explicar. Fomos visitar a minha avó e como qualquer casal que em início de vida é ajudado pelos progenitores, os meus pais também eram bastantes vezes ajudados por ela. E, em remate de despedida, a minha avó ofereceu uma nota de cem escudos ao meu pai, na altura bastante dinheiro. O meu pai, que até estava a precisar dessa maquia, começou por recusar, e a minha avó insistia, e o meu pai recusava, até que ela colocou o dinheiro dentro de um dos meus bolsos e disse que seria para mim. E lá seguimos rumo a casa.
Como os meus progenitores durante a viagem não se lembraram que era eu o fiel depositário de uma nota de cem escudos, comecei a fazer contas à vida e naquilo que haveria de ir comprar quando chegasse à Maia. E, mal saímos do carro, disse-lhes que ia brincar com uns amigos, mas dirigi-me rapidamente à mais próxima das mercearias, onde comprei quase todo o recheio de pastilhas elásticas e outras guloseimas. E ainda recebi bastante dinheiro de troco. Sabendo que os adultos não dão grande valor a pastilhas elásticas, pelo menos a um stock que daria para mais de um ano, resolvi ir ao quintal, ao fundo do quintal, fazer um enorme buraco na terra e enterrar o espólio e o troco que me sobrou. Todos os piratas escondem os seus tesouros, e eu escondi as pastilhas elásticas “Pirata”.
Eu sabia que os meus momentos de riqueza eram efémeros, era apenas uma questão de horas e, como tal, já perto da hora de jantar, a minha mãe lembrou-se da nota de cem escudos. Inicialmente referi que não me lembrava de nota nenhuma mas, depois de uns safanões, admiti que tinha recebido tal maquia mas que de certeza a tinha perdido. Procurou-se a nota no carro, deambulou-se nos caminhos que eu tinha percorrido, e nada. De novo novos safanões e umas palmadas no rabo avivaram-me a memória, admiti que tinha investido o dinheiro em pastilhas elásticas e guloseimas, mas que me tinha sobrado uns trocos e que estava disposto a partilhar de forma a elevar o orçamento familiar. O argumento que os cem escudos me tinham sido oferecidos a mim por recusa das restantes partes, não surtiu grande efeito.
Eram tempos muito engraçados, uma altura que toda a gente me achava piada por ser pequenino e meio parvo. E os tempos não eram muito diferentes de agora, pois, os meus pais também tinham um núcleo de amigos que se juntavam ao fim de semana no café para beberem umas cervejas. E eu, o puto, era o centro das atenções, e até os amigos do meu pai me ensinaram que quando a dona do café me pegasse ao colo, eu deveria meter a minha mão dentro do decote da senhora e referir que a mesma tinha umas mamas bem boas. Era certo e sabido que dava azo a uma risota geral e a mais uma rodada de cerveja. Eram tempos felizes para todos.
A rua onde eu vivia na Maia, era composta essencialmente por moradias, pois prédios seria algo de muito moderno que, pensávamos nós, nunca lá teríamos. Numa residência a seguir à minha, vivia o meu tio, um dos seres mais fascinantes que algum dia tive oportunidade de conhecer.
Como era excelente passar as tardes em casa dele, naquele quintal que tinha um pequeno lago, e dentro do lago, pequenos barcos a motor. No rés-do-chão da habitação funcionava a tipografia de que era proprietário, e no meio de uma barulheira infernal e de máquinas diabólicas, eram impressos cartazes e calendários, livros, jornais regionais e panfletos.
Mas como bom gestor e empresário, e porque a vida não era fácil, aceitava todos os trabalhos que lhe eram encomendados, desde juntas de freguesias, paróquias, ou agrupamentos políticos de esquerda e de liberdade, não recusava nada. Penso que já se vivia um clima permissivo, e até a própria PIDE já não tinha o mesmo vigor de outrora, já se respirava no ar certeza que mais dia, menos dia, a liberdade conquistaria o poder.
Antes de passar a residir em Coimbra, vivi até aos meus seis ou sete anos entre a Maia e uma aldeia do concelho de Matosinhos. Senti uma enorme tristeza quando me mudei, dada a ausência da família, não dos meus pais ou do meu irmão, mas dos inúmeros primos e tios que deixei para trás, mas com quem vou mantendo, apesar dos anos, algum contacto e a amizade de sempre. A Maia era uma vila pequena, tinha a zona central e pouco mais e em cada esquina encontrava sempre um familiar, um tio que me protegia mas também que me vigiava ou um primo para iniciarmos uma excelente brincadeira de garotos. Os amigos dos meus pais, aqueles amigos de infância, também eram uma espécie de tios, e os amigos dos meus primos também eram meus primos. Foi o que mais custou quando cheguei a Coimbra: nem um primo, nem um tio, nem um amigo, uma vida toda para refazer e nem sequer possuir um quintal para eu brincar.