Opinião – A farsa no sistema político que nos representa!

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Ainda se lembra das legislativas de 2019? Quando em campanha, só um dos nove candidatos a deputado pelo nosso círculo eleitoral defendeu a antecipação da morte. Agora, no parlamento, numa surpreendente reviravolta, só um votou contra a despenalização da eutanásia! Sinto-me defraudado, apreensivo até, face a esta curiosa (e perigosa) fragilidade do nosso sistema de representatividade. Sem se terem apresentado a sufrágio com um dossier controverso “que convoca valores e diferentes visões da vida enraizadas em distintas convicções filosóficas, éticas ou mesmo religiosas”, uma maioria não mandatada votou, apressadamente, por uma mudança cultural de profundo impacto na nossa sociedade.
Ao contrário da maioria dos deputados e das muitas opiniões cabalmente esclarecidas que li, sinto-me impreparado para a discussão sobre o direito à morte assistida. Quis reler Kant, para perceber se a ação da não conservação da vida poderá ser uma ‘lei universal da natureza’, mas continuei indeciso. Reconheço a minha inépcia e estranho a aparente ligeireza com que, à tona do iceberg, tantos discutem o que não se vê. Uns, cheios de certeza, garantem que o SNS chega a todos e que há alivio do sofrimento na doença, outros, seguros da sua lucidez no ato de exercer o direito à liberdade individual, assumem a perplexidade jurídica de se permitir eliminar a vida e remetem-se ao ‘silêncio surdo’ sobre a rampa deslizante que leva à eutanásia não voluntária.
Será o que está a ser apresentado como um avanço progressista, ou como um ato de compaixão, não é, afinal, o retrocesso civilizacional, a eugenia? A verdade é que o Sapiens produziu na Terra, até agora, muito pouco de que nos possamos orgulhar, à exceção, claro está, de sermos mesmo muito bons a sobreviver. Desde 2011 que morrem mais pessoas por doenças não transmissíveis do que por doenças infeciosas. Quem consegue juntar pelo menos duas letras, sabe que somos cada vez mais velhos, mas talvez não saiba que depois dos 65 anos, antes de chegar o sofrimento (físico), um em cada três humanos morre demente. Talvez seja por causa desse crepúsculo que receio o debate. Imagino um cenário em que, sozinho, gelado, não amado e incompetente na escolha da morte, sou (in)voluntariamente injetado por me ter tornado descartável. Será um sunset inócuo, provavelmente o menos doloroso para os que amei, mas não é a passagem idílica que imaginei.
Noutro prisma, tenho uma ideia cristalina dos deveres do estado: primeiro, zelar por quem quer viver e, segundo, cuidar de quem pede para morrer. Basta ler o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida: “é preciso garantir outro tipo de respostas, sejam elas médicas — como os cuidados paliativos, por exemplo — ou sociais, que possam evitar o pedido de morte de um doente, antes sequer de se ponderar a morte medicamente assistida”. Ora, um país que precisa de 496 médicos nos cuidados paliativos, mas só tem 66 e, simultaneamente, tem 8.000 crianças (OITO MIL!) com doenças incuráveis avançadas e progressivas, mas só consegue chegar a 80, não nos deixa lá muito orgulhosos, pois não? Esta é, para já, a minha discussão, não a fórmula como os nossos doutos representantes irão hierarquizar os que, em desespero, lutam para viver ou pedem para morrer. Preocupa-me os 250.000 que esperam por uma intervenção cirúrgica, ou o que dizer aos utentes do Hospital Garcia de Orta que aguardam há mais de um ano por uma cirurgia vascular ou aos doentes oncológicos do Hospital de Faro, alimentados por familiares nos corredores das urgências, enquanto desejam uma vaga na especialidade, numa longa espera que os pode, agora, empurrar para a eutanásia, criando inclusive contexto para a obrigação de a pedir.
Perante tal realidade, nua e crua, cito o abolicionista da pena de morte, professor da Universidade de Coimbra, bispo e ministro, Aires de Gouveia: “Do nosso coração, iluminado pela inteligência, sai o nosso voto, do nosso voto nasce a lei, da lei dimana a sentença, da sentença vem o carrasco, diante do carrasco levanta-se a forca e da forca pende a corda que esgana o pescoço do justiçado; portanto, entre o nosso coração e o pescoço do padecente há um fatal e abominável sorites”. Como não me revejo nesta lógica homicida dos que me representam, nem tão pouco nas suas consciências individuais, gostava de ver questionada essa maioria política, não mandatada, através de uma consulta aos populares, que somos nós. Não que a vida seja referendável, mas sempre seremos mais uns milhões de Deuses autoproclamados, insaciados e levianos, a decidir sobre o que desconhecemos.

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