Opinião: Receita de Ano Novo

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Hesito entre escrever no tom do último dia do ano que ora se fina (momento em que escrevo este texto) ou no tom que terá o romper do dia 2 de Janeiro do novo ano (quando a primeira edição de 2020 do Diário As Beiras chegar às bancas e este singelo artigo se prestar a ser lido).
Hesito, em rigor, entre o tom melancólico que marca o final de um ano já vivido, gasto e cansado, e o tom esperançoso que os novos votos das primeiras auroras sempre prometem.
Hesito entre dois pretensos tempos, presente (quase passado) e futuro, como se a derradeira badalada da meia-noite primeva tivesse, por artes mágicas, o extraordinário poder de nos mudar as vidas.
E, de repente, para saciar este voraz desejo de novidade, apetece-me a farta ‘Receita de Ano Novo’ de Carlos Drummond de Andrade:

“Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanhe ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
ou passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.”

Tem absoluta razão o conhecido mineiro – um dos melhores poetas brasileiros de sempre –, afinal não está a novidade dos tempos no despontar de cada ano, mas antes depende inteiramente de nós.
Provemos-lhe então a prescrição e, se é dentro de cada um de nós que o verdadeiro Novo Ano se abriga, adormecido, desdenhando das crenças parvas e dos decretos de esperança à espera de que sejamos dignos da sua novidade, renovemo-lo nós, ao tempo, de forma consciente.
Enfardemos, pois, a receita de Ano Novo, até mais não podermos. E, para isso, logo à noite (ou ontem, consoante o tempo escolhido seja o da escrita ou o da leitura desta lengalenga), que se lixem as passas e os brindes e que tão-só acorde o que dentro de nós restar de novidade, que em nós despertem todas as sementinhas do vir-a-ser.
As minhas noites de fim-de-ano são há muito passadas com os meus irmãos e uns quantos amigos tão foliões quanto aqueles dois. Começam à mesa e prolongam-se noite fora, recheadas de saltos e bailatas, risos e alegria para dar e vender. Hoje uma inoportuna dor ciática (avessa a festas, com certeza) ameaça conter a animação, mas não haverá pena que me leve a alegria de ali estar, rodeada de gente que amo sem condição.
Resta-me, porém, a consciência de que esta será somente mais uma noite – oxalá feliz, sim – e que nada depois dela mudará, a não ser que o queiramos nós, de facto, com todas as forças.
É esse o meu desejo para 2020. Como escreveu o poeta, que o Ano Novo desperte em cada um, que as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, e que o Ano Novo deveras aconteça.
Por isso, após o obrigatório ‘A menina dança?’ (‘Quando a alma não é pequena’ vale sempre a pena ouvir os Dead Combo), que fique o ‘Everyday life’ (a música que dá nome ao último álbum dos Coldplay que, apropriadamente, se divide em ‘Nascer’ e ‘Pôr-do-sol’), que aguentemos firmes o dia-a-dia e continuemos dançando, mesmo (e especialmente) depois de as luzes se apagarem.

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