Opinião: Nos Mares do Fim do Mundo ( II )

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“Nos Mares do Fim do Mundo”, com o subtítulo “Doze meses com os pescadores bacalhoeiros portugueses, por bancos da Terra Nova e da Gronelândia”, é uma obra que foi redigida essencialmente durante a primeira viagem e complementada nas outras duas campanhas do bacalhau.

O livro, com quase 250 páginas, com texto e fotografias do próprio Bernardo Santareno, é dedicado a alguns dos pescadores, companheiros de viagem do médico e que, no fundo, simbolizam muitos dos arquétipos presentes a bordo, nestas três viagens, mas também em milhares de muitas outras realizadas ao longo de alguns séculos.

É dedicado ao pescador que por ali anda há mais de 40 anos e que naqueles barcos assistiu à morte do próprio pai, sendo agora acompanhado pelos seus três filhos. É dedicado aos pescadores valentes, humildes, simples e pobres. É dedicado aos que ensandeceram no mar. É dedicado aos que se perderam nos seus dóris, sozinhos no meio do mar imenso, andando à deriva durante vários dias.

Alguns acabaram por ser encontrados, algures por entre os rasgos do nevoeiro intenso enquanto outros nunca mais foram vistos, perante o desespero posterior das mulheres que os aguardavam na Nazaré, na Figueira, em Ílhavo, em Vila Praia de Âncora, em Peniche, na Foz do Arelho, na Póvoa do Varzim, na Fuseta e noutras terras. É dedicado a todos os que se afogaram nas águas geladas dos bacalhaus, à vista dos icebergues.

É dedicado a “todos os pescadores portugueses que têm o riso claro e feroz, que sempre ocultam nos olhos um aceno de morte, que todos os dias, naturalmente, fazem milagres de força, que se a pesca adrega de ser boa, cantam e bailam sozinhos, como os meninos e os loucos”.

O livro é composto por pequenos textos que relatam episódios simples, relevantes, do quotidiano, numa prosa imbuída de poesia e de grande humanismo, relatando uma realidade que por vezes parece ficção, tal a rudeza das tarefas e a inclemência do clima. Escreve Bernardo Santareno, “como Jesus lavando os pés aos apóstolos, assim eu queria servir esta gente”.

A prosa é muito realista e visual, transportando os leitores para bordo dos lugres bacalhoeiros. “Centenas de gaivotas gritam e rodopiam em volta do “David Melgueiro”, fartas com as vísceras desperdiçadas do bacalhau”.

E acrescenta, “uns fazem o “trote” ao peixe, isto é, abrem-no, separando para um lado o fígado precioso e para o outro as restantes vísceras, que não são aproveitadas; outros cortam as cabeças dos bacalhaus, utilizada na confeção de farinha; outros ainda, os escaladores, acabam de abrir o peixe no sentido vertical, espalmando-o em seguida, depois de lhe terem tirado a coluna vertebral; num quarto tempo, o bacalhau é lavado em grandes selhas e, por fim, salgado e armazenado no porão (…) e a pesca do bacalhau continua pela noite fora, agora à luz de potentes projetores”.

Tudo isto, depois de os pescadores se terem levantado às quatro horas da manhã e de terem estado muitas horas nos seus dóris, habitualmente negros, pequenos barcos individuais, afastados do navio, pescando solitariamente, à linha, dezenas de bacalhaus, de todos os tamanhos, ao frio, ao relento, ao vento, navegando em águas geladas e rezando para que o nevoeiro não surgisse de repente, nem que o mar chão se transformasse num cão.

“Nos Mares do Fim do Mundo” ( 1959 ) é um dos poucos relatos desta odisseia que moldou gerações de famílias portuguesas durante séculos, muitas delas para fugirem à miséria ou à guerra colonial.

De referir que, de acordo com Bernardo Santareno, por vezes estavam mais de cinquenta navios de várias nacionalidades a pescar na mesma área, pelo que a odisseia do bacalhau envolveu igualmente pescadores de muitas outras nacionalidades, talvez com maior destaque para franceses e espanhóis.

Em 2020 assinalar-se-á o primeiro centenário do nascimento de Bernardo Santareno.

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