Opinião – Kágados de longe numa República que vai para longe!

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Casimiro Simões

A querida República dos Kágados, na Alta de Coimbra, onde vivi um dos mais marcantes ciclos da minha juventude, celebrou os 86 anos da sua fundação.
Ao subir os degraus rangentes da íngreme escada de madeira, levando num saco o singelo contributo para o lauto banquete (numa sala que outrora abrangia o meu quarto e o do amigo chinês Gao), já se ouvia música apropriada para o local e para o momento.
Desde logo, a “Chulinha” que José Mário Branco nos trouxe de muito longe há quase 40 anos.
Mas também as trovas e cantigas muito belas do vizinho José Afonso, que nos anos 50 residia ali ao lado, no Beco da Carqueja, à Sé Velha.
Aliás, foi nos Kágados, numa longa noite de boémia, que o grande Zeca compôs “Vampiros”, eterno tema da resistência a todas as formas de opressão e roubalheira sem fim.
A música de Zé Mário acabou por ser a mais sentida de todas as receções a quem, como eu, teve no criador de “Ser Solidário” uma das grandes referências cívicas, culturais e de Abril.
José Mário Branco, que viveu na República dos Kágados 20 anos antes de mim e foi depois preso pela PIDE, tendo partido logo a seguir para o exílio em França, associou-se ao meu último livro, “Pessoas, Pensamentos e Palavras” (PPP), com o poema “Mudar de vida”.
Morreu no dia 19 de novembro e já não respondeu ao convite que, na véspera, lhe enviei para a apresentação de PPP dez dias depois, em Lisboa, na sede nacional da Agência Lusa, com que assinalei 30 anos ao serviço da empresa.
A festa dos Kágados – “centenário”, segundo a tradição – já começou na sexta-feira, noite fora, para os mais corajosos, e promete prolongar-se pelo menos até ao raiar da aurora de domingo, para os mais resistentes maratonistas!
Voltou a ser bonito o reencontro fraterno com kagadais figuras de diferentes gerações, homens e mulheres.
Mas foi impossível evitar alguma tristeza pelos membros da República dos Kágados – a mais antiga da cidade e do mundo, constituída no longínquo e gélido 1o de Dezembro de 1933 – que estão doentes, que perderam familiares próximos ou enfrentam o desemprego e outros dramas pessoais!
Sentimos a falta de muitos Kágados, comensais e amigos da casa que já não estão entre nós e que eu próprio tive ainda a oportunidade de conhecer.
É o caso do médico Eugénio Eiriz e do engenheiro Vítor Moura, que nos deixaram prematuramente, do grupo que viveu intensamente a chegada da liberdade, no 25 de Abril de 1974, e que depois, em muitos casos, esteve envolvido na Revolução dos Cravos, quando Zé Mário e Zeca eram nomes cimeiros da emancipação democrática do povo português, após quase meio século de fascismo.
Além de José Mário Branco, que morreu aos 77 anos, também o antifascista Manuel Ramalho Gantes, que integrou a minha República nos anos 50, partiu recentemente, em 20 de outubro, com a bonita idade de 93 anos!
A par do valor gastronómico do berbigão da Ria de Aveiro, é comovente ver como o médico Humberto Rocha mantém uma dádiva regionalista que no passado partilhava com outro kagadal aveirense, o falecido Manuel Gaspar.
Mais uma vez, os “cricos” que o antigo presidente da Câmara de Ílhavo levou este ano para o número 98 da velha rua do Correio estavam uma delícia!
O Gaspar talvez exigisse os bivalves um pouco mais apurados, comidos um a um, com a concha, enxugando o molho com pedaços de pão…
Mas o que importa é que o nosso Humberto cumpriu a missão com empenho exemplar.
O jovem Pedro Pinheiro deu informações sobre os atuais problemas da habitação, propriedade da Câmara de Coimbra desde os anos 90.
Eu evoquei também, especialmente, o compositor José Mário Branco, o jurista Manuel Ramalho Gantes, o professor José Luís Câmara Alves e o padre Miguel Lencastre.
Quatro ilustres Kágados falecidos a quem, pelas suas obras, dedico outras tantas prosas, muitos pensamentos e palavras no livro PPP.
Hoje, Humberto Rocha e eu éramos os mais antigos neste “centenário”.
A marcha da vida é inexorável!
Porém, muitos outros e outras, de gerações posteriores, não faltaram à chamada.
Alguns vieram de muito longe, nas suas viaturas, incluindo de países da Europa Central.
Houve comida, vinho, conversa e fraternidade.
Juventude e cravos encarnados.
Os Kágados terão mesmo futuro

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