Opinião: Fast-food engorda o espírito

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Nos dias de hoje, alimentamos o corpo como saciamos o espírito: mal.

Há muito que nos rendemos às vantagens da fast-food, enfardando menus rápidos e saciantes, que, mais cedo ou mais tarde, como cantava António Variações, farão os nossos corpos pagar pela falta de juízo das respectivas cabeças.
Paradoxalmente, à medida que pior nos alimentamos mais gordos ficamos, e, assim, por sorte, vamos sendo salvos pelas banhas e pelos refegos, já que ninguém perdoa o desleixo com a integridade física.

Por isso, lá vamos nós alternando os gordurosos e saborosos ‘MacMenus’ com umas saudáveis e enfadonhas saladas, a troco de um corpo bem feito e uma saúde controlada.

O problema é que, ao invés, ninguém se rala com o culto de uma integridade ética e moral que não é revelada nas fotografias que circulam nas redes sociais. E, assim, vamo-nos tornando numa sociedade de ‘obesos morais’, de espíritos gordos e laxos, inoperantes e disfuncionais, incapazes de apreciar uma boa dose de inquietação (refeição apurada, condimentada com profundas reflexões e sérias análises, e decorada com uma boa dose de atenção pelos mais frágeis).

Pelo contrário, vociferamos, esbracejamos, prometemos cobras e lagartos, vaticinamos o fim do mundo, enfim… mas, de repente, à mesma vertiginosa velocidade com que de nós se apoderara, a indignação desaparece sem deixar rasto. Contentamo-nos, pois, com umas medíocres doses de fast-food para o espírito.

Foi assim há poucas semanas com o caso do recém-nascido despejado pela própria mãe num contentor de lixo. Ali permaneceu o pequeno bebé, ainda com o cordão umbilical, sem roupa, durante mais de quinze horas, abandonado a uma fatal sorte de que só a persistência de outros sem-abrigo o viria a salvar.

Não quero agora comentar o habitual ‘preto ou branco’ que para uns a tornou numa criminosa sem perdão e para outros uma desgraçada vítima da vida moderna. Quero antes lembrar o pequeno milagre protagonizado por aquele Deus-menino para repudiar a grave e doentia indiferença que vai engordando os nossos espíritos anafados.

Anteontem mesmo o actor José Lopes foi encontrado morto numa tenda onde vivia sem meios de sustento dignos. Um amigo afirmou que o José era um pobre com a dignidade de um verdadeiro Rei já que nunca deixara de redistribuir tudo o que lhe davam com quem tinha ainda menos do que ele. E é esta grandeza que quero ressaltar, na esperança de que nos faça despertar do marasmo de que padece a nossa integridade moral.

Todos sabemos onde se acoitam os sem-abrigo, todos adivinhamos em que becos escondem a vergonha e a solidão, todos conhecemos os lugares onde largam a dor e o desespero, mas, por via do mau alimento a que votamos os nossos espíritos, estes tornaram-se tão laxos e inoperantes que nos deixam ignorar os caixotes e os cobertores velhos que denunciam a sua existência.

E, por isso, olhamos de soslaio as provas da sua desgraça e apontamos-lhes o dedo pelas suas más escolhas… como se uma escolha não pressupusesse sempre uma liberdade que aqueles homens e mulheres há muito não têm.

E, por isso, evitamos olhá-los de frente para fugir a verdadeiras inquietações e bastamo-nos com a energia que buscamos na gordura de umas quantas ‘MacIndignações’ que rapidamente digerimos e esquecemos.

E, por isso, aquietados por espíritos gordos e amansados, de barrigas cheias e corpos quentes, somos cada vez menos aptos a provar a nossa humanidade.

A muitos daqueles sem-abrigo também faltarão a bondade e a coragem próprias dos grandes homens, mas no seu caso não será difícil perceber por onde as foram deixando. Já nós… saberemos ainda onde as perdemos? Consideraremos nós, a propósito das Festas que aí vêm, ofertar o nosso cuidado, amabilidade e bem-querer? Ou bastar-nos-emos, mais uma vez, com os habituais presentes, vazios de amor, mas fartos em pompa?

No dia seguinte ao Natal, para além dos restos da nossa abastança, ter-nos-ão sobrado abraços e olhares? Ou estaremos nós a transformar-nos em sem-abrigo morais?

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