Escrevo este texto nas primeiras horas do dia 24, véspera de Natal. Daqui a pouco acordarei o bando cá de casa para que se aprontem para o almoço que já será de festa, farto e animado.
Por deveres dos seus ofícios, ao almoço faltarão uns poucos que a nós se juntarão a tempo do jantar e, à boa maneira portuguesa, ao redor da mesa comemoraremos o nascimento do Deus menino.
A sorte tem-nos protegido e, apesar da saudade de outros, o nosso Natal é cada vez mais animado. Já somos uma boa vintena, entre pais/avós, filhos e netos. (Nesta categorização eu continuo na quota dos ‘filhos’, já que as comemorações se mantêm na casa dos meus pais.)
Como lá em casa, os mais jovens, filhos e sobrinhos, se dividem entre a família Girão e as suas outras famílias (paterna ou materna, conforme os casos), há um dia de casa cheia ( 24 ou 25, de forma intercalada) e aí, com namorados e afins, completamos um bem aviado quarteirão de gente, que torna o dia muito barulhento e bastante propício a peripécias de última hora. (Não é raro chegar alguém com quem não se contava e que vem baralhar a contagem das prendas, e, assim, por via de tais imprevistos, ultimamente adoptámos o utilíssimo método do ‘amigo secreto’. Por isso, a quem vier por bem só exigimos uma pequena lembrança para o molho dos embrulhos, já que bacalhau há sempre de sobra e os ovos acrescentam-se num ápice.)
Não sei se algum dia escrevi sobre o Natal nas famosas redacções que, na minha meninice, marcavam a instrução primária, mas, se o tiver feito, tenho a certeza de ter escrito que gostaria de um Natal com mais gente, pois naquele tempo fazia-me falta o alarido dos Natais das grandes famílias.
A minha mãe é filha única, o meu pai tem uma única irmã e ambos já eram órfãos de pai antes de se casarem. À consoada éramos, pois, poucos mais de meia dúzia. Ao todo, éramos cinco primos, mas entre os três mais velhos (onde me incluo) e as duas mais novas distam cerca de oito anos e assim, como bem se percebe, não havia a algazarra que a escassez de lugares à mesa e os consequentes acotovelamentos provocam.
Agora é bem diferente, somos muitos mais, e o espaço, embora maior, torna-se escasso e a trabalheira crescente. À última hora faltam bancos e sobram pratos e redistribuem-se os lugares para ajeitar a malta toda. Ainda assim, o pragmatismo do meu irmão e a organização da minha irmã (que me perdoem os cunhados este destaque!) garantem o controlo da azáfama… mas não chegam para domar a vozearia e os risos.
Lá em casa, hoje, como sempre, cheirará a lar.
Cheirará a bacalhau, broinhas, filhoses e rabanadas, que, ao contrário do que acontecia na minha juventude, sem que eu percebesse como (da mesma maneira que hoje gosto de favas, pastéis de bacalhau e outras iguarias que antes desdenhava), se tornaram desde há alguns anos os meus doces favoritos de Natal. Mas, mais do que tudo o resto, sobressairá o cheiro a amor.
Na televisão – já o escrevi antes – poucas cenas me emocionaram mais do que a declaração de amor do Hank Moody, herói de Californication, à sua amada Karen Van Der Beek: “Damn you smell good, you smell like home” (em bom português, “Caramba, tu cheiras bem, cheiras a lar”).
E hoje de novo lembro aquela cena porque é disto mesmo que trata o Natal: amor e cheiro a lar. (Perdoem-me todos a redundância!)
Tal como Torga, também eu “Não tenho deuses”, mas, ao contrário do poeta, nem por isso vivo desamparada. Antes me sustém o tal cheiro a lar que encontro em tantos lugares, em abraços, vozes e olhares. Sim, porque há abraços e vozes e olhares que nos aquecem mais que qualquer lareira e nos sabem melhor que qualquer banquete. É esse o meu amparo, o meu aroma favorito, o cheiro a lar… o amor, afinal.
E, por isso, a todos, especialmente a quem não tem o melhor tecto e nem o mais quente cobertor, a quem falta a farta mesa, desejo que não falte uma voz calorosa, um abraço cheio ou um olhar terno. Qualquer que ele seja, de onde quer que ele chegue, nesta noite, que a ninguém falte o cheiro a lar!