Não deixa de ser interessante conversar sobre os interditos alimentares. Não aqueles que as religiões impõem, mas aqueles que as pessoas consideram como limites ao que lhes entra na boca. Um dos clássicos é o sangue do porco, da galinha, da lampreia usado nos enchidos, nas papas, nas cabidelas e nos malandrinhos. O sangue em geral, portanto. Agrava-se a discussão e os trejeitos de boca (ahhhrrr que nojo!) quando refiro receitas doces com sangue. Para alguns é quase o limite do impossível alimentar. E dizem-me “com tanta coisa boa para fazer, porque carga de água fazer uma sobremesa com sangue? Pois, até pode ser verdade. Mas se existe receituário isso deve significar alguma coisa. Preconceitos à parte, no que a doces diz respeito, vamos lá descobrir que o sangue é um ingrediente e bom.
Uma das receitas mais conhecidas será, porventura, a Chouriça Doce de Vinhais já reconhecida como IGP. Feita com carne e sangue de porco bísaro, pão de trigo e azeite é adoçada com mel de urze, nozes e amêndoas esta chouriça doce acrescenta singularidade ao destacado fumeiro de Vinhais e é prova de que a utilização do sangue se estendia à parte final da refeição. Saindo da Terra fria para a Terra Quente, em Alfândega da Fé fazem-se ainda as Chouriças Doces que levam pão, azeite, canela, amêndoa, açúcar, mel e sangue de porco e são fumadas em lenha de carvalho ou de castanheiro, nunca de figueira que azedam. Comem-se, obviamente, no fim da refeição.
Por terras do Tâmega, encontramos as Papa de Sarrabulho Doce. Sob a influência do Pão do Padronelo ou Pão de Ovelhinha, espécie de pão pai de muitas receitas da zona, resulta esta receita da vontade em utilizar o sangue da matança no momento doce da refeição. À calda de água, açúcar, mel (muito), o Vinho do Porto, a canela, o pão (ressesso) já migado junta-se o sangue de porco que foi esfarelado depois de cozido. Quentinhas, estas papas são de comer e chorar por mais.
Bem perto da Guarda, temos as adocicadas Morcelas Doces do Jarmelo pois que ao pão migado com o sangue, à cebola, ao unto, é adicionada a salsa, açúcar e mel. Cozida, frita ou torrada na grelha no borralho serve de lanche.
Bem pertinho aqui de nós, as muito conhecidas Papas de Moado obedecem a outra lógica de receituário e de ingredientes. À massa feita com farinha de trigo peneirada e água é adicionado o açúcar, o cravinho, os cominhos e o sangue. As melhores são as que são feitas em lume brando de uma fogueira feita lenha de acácia, eucalipto ou pinho sendo que, na cozedura, o preparado leva dois limões inteiros. Se quiserem deixar os preconceitos de lado, vão provar estas Papas de Moado às freguesias adjacentes à Figueira da Foz e digam-me depois quais as que gostaram mais, pois cada uma tem as melhores do mundo. Afianço eu.
Para terminar, duas receitas de uma terra de que gosto muito, a Ericeira. Provem as mouriscas ou carracenas, uma espécie de filhós de sangue de porco feita com farinha, açúcar, canela, nozes e pinhões. E logo a seguir as chouriças doces que na simplicidade dos ingredientes (sangue de porco, farinha de trigo, canela, açúcar e erva-doce) nos mostram um sabor singular somente entendível para quem entra do espírito jagoz.
Esperei pelo tempo frio para ter esta conversa, afinal o Inverno puxa a lembrança para as matanças. E se gostamos das morcelas que tão bem conhecemos e nos servem de aperitivo, porque não experimentar estas versões doces? Atrevam-se e vão por esse Portugal descobrir estas doces receitas com sangue. Conselho meu que não sou nada destas coisas…