Opinião – A gente nunca tem razão

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Quinta feira à tarde de um inverno soalheiro. Os ponteiros marcam as quatro menos um quarto. O passeio veste-se de folhas tombadas, humedecidas na penumbra da cidade.
Remexendo num aviso dos correios entre a correspondência acumulada nessa semana, marco o 300 502 502. Aguardo com o número da segurança social à mão. Explico que tenho uma carta registada que devia ter levantado, mas que por ter estado fora, o prazo foi expirado. Pergunto se podem enviar uma segunda via. Respondem que não sabem. Pergunto se podem adiantar o assunto, pois não vislumbro o motivo. Que não têm acesso. Pergunto se podem enviar informação para o meu e-mail que consta da base de dados. Que não têm indicações para isso. Pergunto se podem passar a chamada a quem saiba dar-me uma explicação. Que não podem transferir chamadas. Pergunto qual a solução. Que isso é com cada contribuinte. Mas o que há a fazer? Que devo deslocar-me à repartição da minha área de residência. Insisto se não podemos resolver através do portal, do telefone ou do e-mail, pois estar um dia inteiro numa fila para me dizerem o motivo da carta que escreveram é forçar-me a um absentismo intolerável. Que não. Que vá aos serviços da área de residência. Mas não haverá outra forma? Que não. Que vá aos serviços da área de residência. Ou… como estou a ligar para um contacto de atendimento geral (e que, por ser geral, não é especializado em coisa nenhuma) que experimente ligar para um telefone direto de lá. O número é… 300… 518… 300. Muito obrigado pela gentileza, foi de uma prestabilidade comovente.
Os ponteiros avançaram. O telefone toca, toca, toca. E eu à toa, à toa, à toa. Ninguém do outro lado. Insisto. O mesmo fado. O telefone toca, toca, toca. E eu à toa, à toa, à toa. Isto repete-se várias vezes. Eu desisto.
Fico a remexer no aviso dos correios. É vermelho, causa respeito. Diz pouco, o que causa ainda mais respeito. Tem numeração. Deve ser coisa séria, muito séria. Vou-me sentindo culpado. Vem lá o meu nome completo. O assunto não deve ser mesmo para brincar. Não fico descansado. Volto ao portal. Contribuições em dia. Aparentemente tudo bem. Pode ser alguma coisa antiga. Mas há sempre uma lei, um regulamento, uma taxa, uma medida, um diretor que muda, há uma vírgula. E, quando assim é, os cidadãos entram em prevaricação sem saber.
Fico a matutar em tenebrosas palavras como processo, alínea, custas, código, dívida, procedimento, prazo, tributário, devedor, execução, impresso, trâmite, instância. São palavras papudas, adornadas, adiposas. Com dupla personalidade.
Desejo, afinal, não receber a carta! E seja o que for, prefiro pagar a defrontar-me com as palavras que me atemorizam o pensamento. Para além do mais, aquilo é como nos seguros, a gente nunca tem razão…

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