Margens da cidade cruzam olhares numa Bienal unida pelo rio

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DB-Pedro Ramos

Chegou a Coimbra há algumas semanas para preparar a bienal. Quais foram as primeiras impressões da cidade?
As melhores. Já tinha vindo cá algumas vezes.

Em trabalho?
Sim, em trabalho. Para dar palestras no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra e também no âmbito do programa de pós-graduação na área de Arquitetura, ligado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. E agora fui convidado para fazer a bienal e, por isso, cheguei mais cedo. Durante este tempo, tenho passeado um bocado. Já conhecia alguns lugares, mas é diferente perdermo-nos na cidade. É delicioso: aqui, da cidade alta, descer até à baixa, andar por essas vielas, subir essas rampas íngremes e descê-las. É sensacional. E come-se muito bem, as pessoas são muito agradáveis, muito simpáticas, mesmo com muito turismo hoje em dia. Não imaginava que houvesse tantos turistas.

Sendo arquiteto de formação, acha que o excesso de turismo pode prejudicar a vida na cidade?
Não desse modo. Aqui ainda está tudo muito tranquilo. As pessoas que vejo na cidade são pessoas legitimamente interessadas, fascinadas com tudo isso. É maravilhoso o património existente: aquilo que se vê nas igrejas, monumentos, bibliotecas, a própria cidade. É tudo muito bonito. E o que vejo são pessoas realmente interessadas, que não fazem como em Veneza, por exemplo, onde os turistas estão a ver um cartão postal, estão como que a “cumprir tabela”. É um exemplo de um turismo estranho, que se percebe que é epidémico. Aqui não: vejo pessoas a fotografar com muito cuidado, a olhar por vários ângulos. Há quem anote e quem escreva. Isso é tudo muito interessante.

Durante a sua estada em Coimbra, ficará hospedado na Casa da Escrita.
Tenho o privilégio de estar nesta casa, num lindo projeto de adaptação feito por João Mendes Ribeiro, que é um arquiteto esplendoroso. É um privilégio que eu não mereço. Mas espero poder merecê-lo.

Como já disse, é formado em Arquitetura.
Sou formado em Arquitetura, mas a minha grande e primeira mais duradoura paixão talvez seja a literatura, antes mesmo da arquitetura e antes mesmo da música. E a literatura portuguesa…

Quais são os autores portugueses que mais admira?
Num arco que vai de Eça, Camilo, passa por Aquilino Ribeiro, Nemésio, Redol, Urbano Tavares Rodrigues, José Rodrigues Miguéis, Fernando Namora, Abelaira, Carlos de Oliveira, Branquinho da Fonseca, Eugénio de Castro, Sophia, Herberto Helder, Agustina … Tenho um irmão que me formou nisso. Ele passava-me os portugueses com o seguinte conselho: “enquanto não ler isto, não fale comigo”.

Como é que se transformou num crítico de arte?
Foi muito por acaso. E, quase simultaneamente, tornei-me curador, profissão que não existia. Eu era arquiteto de formação e comecei a dar aulas de filosofia (também passei pela filosofia). Nessa época, fui cocriador de um curso de Arquitetura na Universidade de São Paulo, mas no campus do interior, onde era responsável pela disciplina de História de Arte. Aí, um amigo convidou-me para escrever um texto e depois escrevi outro. As revistas de São Paulo no Brasil convidaram-me para escrever sobre arte contemporânea. Depois surgiram os convites para exposições de arte.

É um autodidata.
Sim, fiz um mestrado em História, mas paralelamente já estava a trabalhar com arte e fui produzindo cada vez mais até que, em 1990, fui convidado para curador de exposições temporárias no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. E comecei a ter uma relação com o meio, com os artistas. Ia lá montar exposições, quase por intuição, berrando muito, conhecendo as pessoas, discutindo muito com os artistas. Foi delicioso porque fui formado pelos artistas, ao estar em contacto com eles, lendo e acompanhando as produções.

E hoje é um dos curadores e críticos de arte mais reconhecidos do Brasil. Como surge este convite para ser curador da Bienal em Coimbra?
Já fiz exposições bienais, mega exposições, exposições internacionais. Tenho alguma experiência nisso: na Bienal de São Paulo, fui curador-geral e curador-adjunto em três edições, curador-geral na Bienal de Cuenca (Equador), fiz a representação brasileira na Bienal de Veneza e na Bienal de Joanesburgo (África do Sul), fiz projetos para o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo… Quando vim a Coimbra pela primeira vez foi para fazer uma palestra sobre arte brasileira. Quem me convidou foi o António Olaio, (que eu convidei para esta edição da bienal). E conheci o Carlos Antunes que é o diretor do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC). Ele convidou-me para ser curador desta edição da Bienal, que foi maravilhoso porque é uma bienal pequena para os moldes a que eu estava habituado. A Bienal que eu fiz em São Paulo, de 2010, foi um trauma. Eram 160 artistas.

Já conheceu todos estes lugares por onde vai estar a bienal?
Posso dizer que já conhecia todos: são 10 lugares. O mosteiro [Convento de Santa Clara-a-Nova], o edifício Chiado, Sala da Cidade e Galerias Avenida, edifícios da Universidade de Coimbra (Colégio das Artes e Museu da Ciência – Laboratório Chimico e Galeria de História Natural) e ainda pelos espaços do CAPC (sede e Sereia). Além disso, as ruas da cidade porque há uma artista – a Meriç Algün –, que apresentará alguns outdoors. Não estamos a inventar nada: a edição anterior já tinha ocupado a cidade, mas eu gosto muito do centro e do seu mosteiro. E porque é que eu gosto muito? Porque o espaço da universidade fica no promontório, num alto, de um lado da cidade, da margem do Mondego. Do outro, fica o Monte da Esperança, fica o convento. A universidade era eminentemente masculina. O mosteiro era eminentemente feminino. Gosto dessas coincidências, dessas associações, porque as significações vão-se impregnando nas coisas. Elas, as mulheres, ficavam lá em baixo, no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, mas subiram à medida que o Mondego foi inundando o espaço. E, ao subirem para o alto da cidade, ficaram em pé de igualdade. E é lindo que este espaço, que outrora foi um espaço feminino, seja reivindicado pela arte, e que, pelo menos durante esta época do ano, esses espaços se entreolhem numa cidade cortada por um rio. E o tema da bienal é tirado de um conto de João Guimarães Rosa, “A Terceira Margem do Rio”.

Porquê “A Terceira Margem”?
A importância da arte é a proposição de enigmas. É a ciência da resposta. A arte faz perguntas. Então, a “A Terceira Margem do Rio” é uma situação enigmática de um homem, de um pai que, vivendo numa aldeia junto ao rio, decide mandar construir uma canoa para nele entrar e nunca mais voltar a sair. Um homem que se isola e que fica em suspensão sobre o rio contínuo, um “rio-tempo”. O seu lugar deverá ser tomado pelo filho. É o sentido de continuidade. Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, “De tudo ficou um pouco, Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco… […] Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha.” Essa ideia de que é com os filhos que continuamos com a nossa descendência: o conto coloca isso “em suspensão”.

De forma é que esse gesto define o território da nossa contemporaneidade?
Nós estamos a assistir a uma série de pessoas que têm uma vida em suspensão, estão colocadas numa outra margem, são colocadas num limbo, não são reconhecidas, não têm sequer uma carteira. Porque é um mundo cada vez mais se batendo com nacionalismos e quem recusa esses nacionalismos? Se pensarmos que, por exemplo, no início do século XX – portanto, há pouco mais de 100 anos –, as pessoas transitavam pelo mundo sem necessidade de passaporte… Isso significa que houve um grande retrocesso. E as pessoas que estão sem esse passaporte vivem num estado de instabilidade absoluta. Então, a arte é que põe para pensar, desnaturaliza, puxa o tapete. Aquilo que está dado como fixo, como imutável, a arte problematiza. É o modo de apresentar as coisas que faz com que as coisas assumam um outro poder. Porque o uso continuado dos termos, dos conceitos, dos gestos quase que os compartimenta. E a arte quebra este casulo, e as coisas podem viver de um outro modo, adquirir novas configurações e aí podemos assustar-nos, surpreender-nos com elas. Então, o enigma tem essa importância: a arte, ela talvez se converta nesse horizonte de expansão, nessa margem flutuante que não é definida e que não é tangível, mas que fala do próprio devir do ser. Do nosso futuro.

Pode consultar a entrevista completa na edição impressa desta segunda-feira, 28 de outubro, do Diário As Beiras

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