Morreu Alexandre Soares dos Santos, o eterno patrão do Pingo Doce, um dos mais ricos portugueses do último século.
Nasceu rico, privou com gente influente, abandonou o curso de Direito, emigrou para a Alemanha do pós-guerra onde foi operário fabril, mas terá sido como vendedor que aprendeu os truques todos. Por lá terá percebido também que todos são precisos para recuperar um país, com políticas, ideologias ou credos diferentes, todos. E terá percebido ainda que por cá, no sul da Europa, somos diferentes, mais próximos dos nossos (“quando fiz 50 anos de casado, se algum dos meus filhos não estivesse era o fim da picada”, disse ele numa entrevista de vida) e, por isso, cristão, esperava pelo ‘lado de lá’ para com o pai “ajustar umas contas” por quase ter deixado morrer a Jerónimo Martins.
Afirmava que não vivemos em democracia e que somos (demasiadas vezes) governados por estafermos, mas teria contratado José Sócrates porque, apesar da sua notória falta de ética, estava convencido que seria capaz de o mudar e de aproveitar as suas competências.
Não era um homem vulgar.
Discutia muito, tomava decisões rápidas, embora preferisse formular várias hipóteses até achar a melhor solução, e nunca aceitava as decisões dos outros sem explicação.
Confessava-se ambicioso, já que queria criar emprego e gerar riqueza, mas dizia que as empresas não eram dele, e sim de quem nelas trabalhava.
Terá aceitado o leme da empresa que o avô criara de raiz por achar que não podia fazer outra coisa senão homenagear o trabalho de quem lhe proporcionara o conforto com que sempre vivera.
Até aqui, sem reparos… homem inteligente, trabalhador, ousado, um verdadeiro social-democrata.
E, por isso, quando em pleno Agosto, com o país a banhos, os sinos tocaram e o país se dividiu entre os grandes admiradores e os habituais críticos de qualquer símbolo do capitalismo, acompanhei sem reservas todos os tributos ao criador da Fundação Francisco Manuel dos Santos (nome do seu avô materno).
Mas, nem oito nem oitenta… não o menorizemos, ignorando-lhe as falhas típicas da sua condição humana.
Tanto quanto se sabe, aquele mesmo homem invulgar poderá ter ignorado algumas leis ambientais e até fomentado um ambiente intimidatório nas suas empresas.
Mas certo, certo é que ele aproveitou as vantagens da lei e mudou a sede da sociedade para a Holanda, por forma a diminuir o impacto fiscal sobre a sua actividade.
Podia? Podia assim isentar as mais-valias e baixar a tributação sobre os dividendos? Podia, sim. Mas não devia.
Apesar de todo o seu patriotismo, aquele invulgar homem cedeu à vulgar tentação de amealhar o valor dos impostos que sustentam o nosso Estado Social e, por isso, reconhecendo-lhe os muitos méritos, não deixo de lhe apontar o dedo por ter fugido às suas obrigações morais.
Hesitei em escrevê-lo pelo pudor que a morte me deixa, mas entendo que é sempre apropriado lembrar que a lei não nos pode bastar e que, por maiores que sejam as suas capacidades, ninguém enriquece do nada, mas antes por conta de uma sociedade que os acarinha e lhes sustenta os negócios, pelo que àquele enriquecimento deve corresponder a justa devolução a quem para ele contribuiu.
É assim a social-democracia que defendo e que a lei, por si só, nunca poderá assegurar. Para tal, é imprescindível também o compromisso social de cada um de nós.
É claro que é preciso alterar a lei para acabar com a desarmonização fiscal europeia que transformou a sonhada União nos vários ‘brexits’ a que hoje assistimos e que é também urgente acabar com as ‘off-shores’ onde só nos últimos três anos Portugal colocou mais de 30 mil milhões de euros, mas, enquanto tal não sucede, é nosso dever sancionar quem àquelas recorre para subir uns lugares no ranking dos mais ricos do mundo publicado pela Forbes, tornando o mundo ainda mais injusto e iníquo.
E, quando o fizermos, talvez os mais ricos percebam a conveniência de cuidar dos mais pobres e o povo volte a ser quem mais ordena… como numa democracia a sério.