O Fado de uma Coimbra sonhada

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Faltava um quarto de hora para as sete da tarde. O cantor ainda não tinha chegado. “Vem a caminho”, disse um dos músicos. Enquanto isso, a guitarra ia gorjeando notas de aperto à medida que os carrilhões rodavam em busca da afinação certa. Lá-Sol-Ré-Lá-Sol-Dó, do mais agudo ao mais grave. A insubordinação das cordas percorria do braço à voluta que, por ser de Coimbra, termina em lágrima. “Os guitarristas passam metade do tempo a afinar e, na outra metade, tocam desafinado”, disse alguém junto à porta, em inglês, fazendo rir as mesas do lado, cheia de visitantes estrangeiros.
Ao fundo, na casa Fado Hilário, que fica num rés-do-chão da Sé Velha, um foco de luz dá brilho ao Mestre António Portugal, nome incontornável do Fado e da Canção de Coimbra. A caldeação do espaço, que ora recria a tasca típica, ora alude às peças raras de museu fonográfico suspensas nas paredes, torna a experiência do fado de Coimbra um momento intensamente cultural, onde se defende de forma ímpar o património musical de Coimbra, da sua Canção e a preservação da Guitarra de Coimbra.
O Fado Hilário é também um tributo a Augusto Hilário da Costa Alves, nascido em 1864, considerado o primeiro e uma das principais referências do Fado de Coimbra. Ali bem perto, o Fado ao Centro é outra casa que vem evocando a sonoridade de Coimbra revelada no amor e na saudade. A palavra saudade é, aliás, repetida em inúmeros poemas cantados. Aquele sentimento que nos caracteriza, que tomba sobre quem torna Coimbra sua, que se sente mal se chega. Não sei se isto acontece em mais alguma parte do mundo. A mim, acontece-me apenas em Coimbra. O desenho do adeus tão vincado na atmosfera dos nossos ideais idílicos, que nos faz sentir lonjuras, sofrer de uma distância que ainda não percorremos. Algo que se torna difícil de explicar.
O fado de Coimbra traduz o monumento do nosso imaginário quimérico que não é feito de pedras, é feito de gente, de capas negras, de guitarras e de liberdade. Por isso, na utopia de uma Coimbra que tanto carece de ser recuperada e genuinamente interpretada, há aquele fado de Adriano Correia de Oliveira a lembrar-nos que um “coração que nasceu livre / não se pode acorrentar”. É claro que, como em tudo, é preciso sentir. Não vem escrito nos manuais. É-preciso-sentir.
Depois de uma interpretação de Carlos Paredes, o cantor, que entretanto chegou de capa cruzada, tornou bem empregue a espera, de pulmões abertos, exprimindo a voz como a necessidade de sair de si. Entoou uma, duas, três, quatro músicas. E eis que chega o Vítor Sá. Ele, que vinha só pedir para dar carga ao telemóvel, acabou por cantar dois fados. Dele não se ouve só o som. Ouve-se mais, ouve-se o coração.
Desde há cinco séculos que o cantar dos estudantes da academia se faz sentir nas ruas de Coimbra. É conhecido que o rei D. João III chegou a trocar correspondência com o então Reitor da Universidade, em 1539, pedindo-lhe que pusesse fim à vozearia e às cantorias que os estudantes faziam nas suas incursões noturnas pelas ruas, havendo queixas dos moradores. Os músicos e poetas que ao longo da história ficaram associados ao Fado de Coimbra, tendo passado pela nossa Universidade, o caudal artístico que deixaram, a forma de viver encarnada pelo Fado, a tradição popular e erudita que se juntam nessa écloga vivacidade, merecem e justificam o nosso respeito e o nosso empenho na distinção do Fado de Coimbra enquanto tesouro coletivo.

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