A influência das nomenclaturas do presépio deu a milhões de portugueses os epítetos de José e de Maria. Também a esquerda trauliteira, apaixonada por manifestações, revoltas populares, gritos e punhos erguidos nomeou dezenas de peças de teatro como do Zé e da Maria. Um Zé povo, uma Maria esposa. A influência do Zé chegou a Bordalo Pinheiro e da sofisticação deste para as Caldas da Rainha e daqui ao brejeiro popular que “toma lá disto”.
O Zé que ontem encontrei passou fome e foi explorado desde criança. É um saloio triste, honesto como mais ninguém, revoltado da miséria passada e da má sorte. O José que conheci amava nascer de novo numa sorte melhor. Disse-me muitas coisas e disse-as ininterruptas. Oh Doutor tive demasiado azar. Fui escravo do Abílio que ficou comigo e mais dois irmãos quando os pais morreram. Tinha sete anos e já não fui à escola. Passamos fome a trabalhar nos campos da quinta dos vales. Aos miúdos não pagava. Tive muito azar.
Eramos sete e ficámos órfãos pequeninos. O Abílio disse que ficava com três. Com a forme, de vez em quando roubei a comida aos porcos. FdaP do Abílio escravizou-me até aos quatorze anos. Nessa idade fugi. Depois estive em Angola e apanhei o assassino do Holden Roberto. A minha guerra foi com mortos e gente a sofrer. Estive em Cabinda também e levamos muita porrada do MPLA. Ainda choro daquilo, lembro-me muitas vezes, tenho fotos de tudo. Tive muito azar. José chorava e a esposa comovida ao lado.
O povo inculto transportado ao continente africano para uma guerra que não percebia, para ver morrer rapazes de dezanove anos. Mãos fortes e calejadas. Rosto pletórico e largo.
Revolta desenhada na íris e uma tristeza profunda serrando os contornos das frases. Caiu-me um amargo José. Não percebe de política e a modéstia não lhe permite tentar exibir espertezas com um doutor. O Dr. sou eu e ele abre-se como um portão de quinta. Tudo escancarado. As alfaias, as plantações, as dores, as tragédias. O infame azar que lhe tolheu as memórias e as alegrias. Veio a pé de Sta Clara porque o dinheiro é pouco. Toda a vida a trabalhar e não tenho nada Doutor. O José do presépio não tinha nada também. Este José nunca foi à boca de cena tecer os gritos que o império marcou. Este José dava um livro inteiro da história do Salazarismo bafiento. A pobreza, a guerra, a falta de instituições protetoras de menores …
O Zé que ontem consultei é o meu museu do Salazarismo e gostava de o colocar em Sta Comba nem que fosse de cera, a lembrar os Abílios impunes, os soldados mortos na guerra e enterrados no silêncio, os meninos mal trajados, a autoridade distorcida. Tive tanta pena Zé!