Opinião: Havemos de voltar à ferrovia

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Havemos de voltar à ferrovia. Um dia, quando os vindouros perceberem que a desertificação do interior tem de deixar de ser lágrima de crocodilo para passar a ser caminho de desenvolvimento. Hão de ser então repostas as travessas e sobre elas os carris, como quem se atira à reconstituição do corpo de Portugal, hoje amputado de um valioso sistema de circulação. É que tão completa destruição parece coisa de predador, daqueles que nos dão a ver nos documentários das “crueldades” da vida animal: o bicho a dilacerar a vítima com a urgência do atendimento da fome, as vísceras da presa deixadas ao vento para que os vermes secundários delas se aproveitem.

Há já quase duas décadas, numa vila do nordeste transmontano, assisti ao espetáculo do fogo alto da Fogueira do Galo empaturrando-se de travessas da Linha do Sabor, à vista de toda a gente. Era como que a ilustração das decisões políticas que foram passando para a rodovia as conveniências do financiamento, ali onde a mão distribuidora chegava diligente aos bolsos ávidos de predadores de gravata e bons modos. Era, por outro lado, a imagem da mobilidade dos comuns ardendo numa fogueira simbólica, trocando percursos de via a direito pela sinuosidade das estradas, que era também a da distribuição de fundos. Era ainda a liberdade de circular rendida às urgências dos vendedores de alcatrão e de bilhetes de autocarro. Era

Portugal ao invés de todo o mundo, negando à ferrovia o espaço que ia esbanjando na rodovia.

No ano letivo que agora termina vivi e trabalhei em Loulé (onde conheci um delicioso Algarve, que é o do dia-a-dia dos que ali vivem e trabalham). Também ali se condenou o comboio à condição de transporte de segunda, vergado pelo desinvestimento. E se a linha do Algarve – cujo trajeto é belíssimo! – é um lugar de passagem espaçada de velhas composições, muito melhor não poderá ser dito da Linha do Sul que, em pleno século XXI, apresenta troços de via única, como nas linhas do comboio elétrico de plástico da minha infância.

O processo de destruição das CP é o já amplamente experimentado nos diversos setores que constituíram, em tempos, o corpo empresarial do Estado: primeiro partem-se as estruturas em mil pedaços, depois privatizam-se os mais apetecíveis, por fim deixa-se apodrecer o restante até que os utentes estejam por tudo. A ajudar ao festim, o preço dos bilhetes faz com que viajar de comboio seja, hoje, muito caro e incerto – a falta de material circulante deixa sistematicamente em terra quem não tem possibilidade de antecipar os percursos da sua vida.

Não há de faltar quem, nestes dias de balanço das governações, venha chorar as medidas que levaram a ferrovia portuguesa ao quase colapso. O mal é “estrutural”, cabendo ao caminho de ferro o papel de testemunha de um país que precisa voltar a produzir (lembram-se de quando as locomotivas, as carruagens e as automotoras eram produzidas pela Sorefame?). Há que estudar a possibilidade de reavivar os ramais destruídos pelo cavaquismo e herdeiros do tempo da calamitosa “alternância democrática”, dando suporte à fixação de pessoas no “interior”, esse lugar de promessas por cumprir.

Ultrapassadas as contingências do saque das riquezas que por cá foram postas (pela Natureza e pelo Trabalho), um dia, quando nos envergonharmos de ser um país de ruínas industriais, havemos de voltar ao desenvolvimento. Aquele que se quer sustentável. E vamos precisar dos comboios.

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