Opinião: Contar a verdade

Posted by
Spread the love

David não sabia que no paraíso havia um precipício. Foi caminhando deslumbrado até cair no inferno. David é David Jiménez.

Foi diretor do El Mundo durante um ano. Apenas um ano. Não provou a maçã da árvore, não se deixou tentar pela serpente.

Por isso lhe chegou a desgraça através de uma carta de despedimento.

Escreveu depois o livro “El Director”, em que relata esses tempos terríveis: pressões políticas e económicas, lutas internas, e uma indústria em declínio. O livro já vai na quinta edição, apenas em dois meses. As pessoas querem saber. Ele fala da bolha que se formou entre jornalistas que se vergam ao poder, políticos que julgam ser os Donos-Disto-Tudo e por um certo tipo de empresários.

David Jiménez foi jornalista do El Mundo toda a vida, quase sempre com a função de correspondente no estrangeiro. Um dia foi convidado a dirigir o jornal. Conta numa entrevista ao DN que entrou na redação sem ter na agenda um único contacto de políticos ou empresários. “O lugar de diretor do El Mundo é muito poderoso, com muita influência. No primeiro dia telefona-nos o rei, o presidente do governo, todos os ministros e grandes empresários. Toda a gente quer conhecer-nos, ter influência”.

Mas num ápice sentiu ter caído no túnel da vida real. “Quando entrei para a profissão era muito jovem e os jornais ganhavam muito dinheiro. Quando voltei como diretor encontrei a imprensa arruinada. As redações tinham despedido metade dos seus jornalistas. E o poder percebeu a fragilidade da imprensa e aproveitou a situação difícil para controlar ainda mais os media”.

No seu livro narra a sucessão de chamadas. “O que todos pediam quando ligavam era que os ajudasse. Respondia-lhes que não, que ia fazer um jornal independente”. Terá sido aí, segundo David, que começou a guerra. Só que nesta história, os Golias que enfrentou eram demasiado grandes, e David perdeu. “Quando as vendas caem 70%, passamos a depender de favores, precisamente daqueles que devíamos estar a vigiar”.

Uma das suas intenções, quando chegou à direção do El Mundo, era a de fazer um jornal que não tomasse partido por nenhum dos lados. Mas “os leitores exigiam que eu denunciasse a corrupção apenas dos outros, não a daqueles em quem votavam”. Por outro lado, a profusão de ataques surgia a partir de interpretações desconcertantes que apostavam no caos: “o Podemos pensava que o jornal estava com o PSOE e o PSOE pensava que estava com o Podemos, o PP pensava que estava com o Ciudadanos”. Talvez esta imagem diga muito sobre a relação dos media com o poder. Talvez este quadro seja agudizado pelo facto de, em algumas redações, haver jornalistas que caldeiam notícias a pedido de políticos ambiciosos como carimbos num passaporte que os há-de levar a um gabinete caso o seu protegido seja eleito.

David chegou a diretor em plena crise financeira. O negócio levou à eliminação de jornalistas das redações, o que foi comprometendo a independência do jornal. Por outro lado, com a chegada da Internet, a adequação não correu bem. “O jornalismo é uma das profissões mais conservadoras que existe e muitos jornalistas veem a tecnologia como uma ameaça, dedicando-se a resistir à mudança”, a declinar participar na transformação digital, a achar que não é sua incumbência elaborar conteúdos multimédia. Mas a realidade é que são os leitores a decidir onde consomem o produto jornalístico. E os jornais devem pensar seriamente em “fornecer a informação com a maior qualidade possível em todos os formatos e em todas as plataformas”. Ao mesmo tempo que o setor reduziu a qualidade, passou a exigir às pessoas que pagassem, que assinassem os jornais digitais. E não se pode ser um jornal condicionado e, ao mesmo tempo, pedir às pessoas que sustentem esse tipo de jornalismo. É antinómico.

Se pensarmos na raiz destas questões, chegamos ao óbvio: o jornalismo deve tratar de contar a verdade às pessoas. Mas este axioma parece algo quimérico, sonhador, utópico, quando deveria ser uma coisa absolutamente normal: contar a verdade.

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.