Opinião: A Greve

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Os três irmãos Júlio, José e Joaquim Porqueira trabalhavam para a empresa municipal que limpava fossas, recolhia lixos e, no essencial, limpava toda a porcaria que se gerava na famosa vila da Porcalhota. O seu trabalho era essencial, mas ninguém queria saber que eles existiam, nem faziam a menor ideia de como eram pagos e por quem. O que interessava é que fizessem desaparecer a porcaria. Nessa altura ganhavam dois salários mínimos e meio, o que equivalia hoje a cerca de 1400 euros. Para além disso, precisavam de duas carrinhas de recolha de porcaria, vários assessórios e outro equipamento, o que equivalia a uma despesa mensal de cerca de 10 000 euros. Era muito dinheiro, disseram os munícipes quando viram as contas no final do ano, pelo que o Presidente da Câmara, Joaquim Maravilha, decidiu fazer outsourcing da limpeza da porcaria. Falou com o seu amigo António Fácil que viu nessa conversa uma oportunidade. De imediato criou uma empresa de recolha de porcaria, a Porcalhota Limpa Lda. A câmara convenceu os três irmãos Porqueira a sair da câmara e passar para a empresa Porcalhota Limpa, prometendo um salário superior: 1450 euros. E eles lá foram. A câmara ficou assim sem três funcionários e deixou de precisar de equipamento e consumíveis para a tarefa de limpar porcaria. Passou a pagar 5000 euros mensais à Porcalhota Limpa, num contrato por ajuste direto, o que representava uma poupança significativa na tarefa de manter a vila limpa de porcaria.

A Porcalhota Limpa pagava um salário mínimo a cada um dos irmãos Porqueira, ao qual somava, por debaixo da mesa, cerca de 800 euros. Ou seja, cada um dos irmãos recebia cerca de 1450 euros de salário mensal. No entanto, a Porcalhota Limpa só pagava legalmente um salário mínimo, pelo que os descontos da empresa para impostos e segurança-social eram só sobre esse valor. Os irmãos Porqueira também só pagavam impostos e faziam descontos para a segurança-social sobre um salário mínimo.

Para além disso, com o tempo, foram sendo solicitados para trabalhar mais uma hora, e depois, mais duas horas, ao sábado e feriados, etc., pois, como dizia o António Fácil, era preciso limpar a porcaria e manter toda a gente feliz.

Na Porcalhota ninguém queria saber da vida dos Porqueira. Quanto ganhavam, quando trabalhavam, que vida era a deles, nem sequer que existiam, desde que a porcaria da Porcalhota fosse limpa.

Mas, os irmãos Porqueira chatearam-se de ser explorados quando o Júlio, que era o mais velho, se quis reformar e percebeu que a sua reforma era de pouco mais do que 400 euros. Decidiram fazer greve e exigir que o seu pagamento fosse feito em salário base, e não em subsídios por debaixo da mesa, e que o valor real total fosse descontado para a Segurança Social e contasse para reforma. O António Fácil ficou furioso e logo ameaçou os Porqueira de desemprego. Os cidadãos da Porcalhota acordaram de repente para o problema quando o cheiro na vila ficou insuportável. Nessa altura, o Joaquim Maravilha atirou-se com unhas e dentes aos Porqueira, dizendo que a greve não podia colocar em causa a limpeza da porcaria. Tinham direito à greve, mas não colocando em causa as narinas dos sensíveis moradores da Porcalhota. Seguiram-se dias de confusão. Os serviços mínimos foram definidos tendo por base a limpeza de toda a porcaria, pois a greve não poderia ter impacto na vida dos cidadãos da Porcalhota. Era uma irresponsabilidade, gritava o Joaquim Maravilha aos quatro ventos. Os irmãos argumentavam com o direito à greve, mas logo os cidadãos se organizaram para lhes retirar esse direito, porque a greve não podia ser feita a qualquer preço. A porcaria tinha de ser limpa, custasse o que custasse. Direitos sim, mas sem impacto, sem porcaria, sem cheiro. Tudo limpo.

– Mas quem raio são estes irmãos? – diziam muitos na rua.

– Já viram o carro em que andam? E andam lavadinhos? Donde lhes vem a massa? Ui… isto cheira mal.

Era um facto, cheirava mal. Os três irmãos estavam somente a defender a democracia, exigindo um emprego com direitos e a possibilidade de fazer greve (deixaram de limpar a porcaria da Porcalhota). Os cidadãos, que até ali os tinham ignorado e nem queriam saber que existiam, ficaram a perceber que não os deviam ter deixados sós. A porcaria tinha de ser limpa e eles faziam um trabalho necessário que merecia respeito. Ficaram a perceber que a democracia e a liberdade exigem responsabilidade e genuíno interesse pela vida dos outros. Não querer saber resulta sempre em porcaria. Que cheira mal, muito mal.

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