Opinião: É pão, senhores!

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Neste ano de 2019 Isabel de Aragão não saiu para a Cidade. Terá um ano mais de penumbra e sussurro antes de voltar a ver o casario da Alta escorrendo até ao rio. Sairá para o ano, como os noivos que mais amiúde passam por aquela porta, à mercê de vivas, pétalas, arroz e esperança, que é o nome da colina em que disseram que sim. Este ano não se lhe verá a feição concentrada com que se faz aos degraus, talvez preocupada com o estado do seu próprio equilíbrio (há quem tenha por certo que as almas vão para o Céu, beneficiando na ascensão do pouco peso que, dizem, lhes foi dado para que viajar pudessem. Já na Terra, até ver, ainda vai vigorando a lei da gravidade, a tal que empurra o corpo para o centro da terra, dizem os versos do Gedeão, “sempre e sempre, ininterruptamente, na razão directa dos quadrados dos tempos”).

Mas não tema Isabel a aventura. Pois sabendo-se que, a todos nós, havendo queda, não teremos mais do que o soalho terrestre a aparar-nos a figura, já a Isabel, por conhecidas razões, valerá ali a força da fé dos devotos, traduzida em ombros que nunca faltaram ao santo amparo por sobre as cabeças dos mortais. E o corpo lhe dariam, preciso fora, que a História está cheia de episódios dos humildes morrendo pelos seus dos amos, não alcançando, aqueles, maior santidade do que a do sem-nome-nem-rosto-nem-nada soldado desconhecido.

A vida dos humildes é trabalhosa. Passasse Isabel pelo velho Largo de Sanção, poucos dias atrás, e ouviria ali falar das coisas que nos vão preocupando quais sejam duas maternidades desacompanhadas, porque o parto de uma outra, que lhes tomará o lugar, está a ser dos mais difíceis. E ouviria lamentar que, enquanto o pau foi indo e vindo, entre pareceres e decisões habilidosas, foi sendo esvaziado o Hospital dos Covões e insufladas as tendas dos milagres da saúde privada, de onde não brotam rosas mas escorre, diligente, o pão que falta ao Serviço Nacional de Saúde.

E ouviria dizer de tão grande e habilidosa reforma qual seja a da municipalização das funções sociais de Estado, São Bento a deslocar o andor das responsabilidades para cima das costas do Poder Local. Afinal, uma carga de incertezas para os ombros de penitentes a quem, ainda há pouco, inventaram leis de criminosas restrições, amputaram freguesias, espalharam calúnias e suspeições. É, de novo, o mais duradouro dos casamentos políticos desta terra a repartir o dote, assim o povo lhes permita dispor do que é pertença de todos.

Para o ano que vem, Isabel passará outra vez nas ruas da Baixa e Sofia. E vai lembrar-se de quando as muitas colchas lhe bordejavam a passagem, as casas habitadas até às águas furtadas, do comércio fechado para a honrar, mas farto de louças, livros, bandeiras, chapéus, toalhados, discos, antiguidades, roupas, relógios e tudo o que mais houvesse para vender e para comprar. Só a Banda vai lhe soar mais timbrada, mais afinada, mais juvenil, como que a reivindicar enchimento para o que viveu mil anos e não pode morrer agora, devagar, em silencioso abandono.

Entretanto, Coimbra continuará à procura de destinos, num tempo novo que tem de ser o de levar transportes às freguesias, obras aos lugares precisados, Centros de Saúde aonde fazem falta, habitação acessível a quem precisa de morar. E se alguém lhe perguntar o que leva no regaço, que tenha o arrojo de responder (a quem pergunta), honrando a vontade de Isabel: é Pão!

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