Opinião – À mesa com Portugal

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Queremos uma pastelaria que nos encha as medidas e com dificuldade a temos. A escolha balança entre o sempre igual, o baunilhado, o açucarado, o gorduroso, o brilhante, o luzidio. De uma ponta à outra da montra repetem-se as massas, os recheios, mudam apenas os formatos. Queremos uma pastelaria que nos encha as medidas e não temos. Mas medalhas há aí para dar e vender. Fico sempre na dúvida de onde vem tanta medalha. De que concursos? Com que júris? Caímos, quer-me parecer, na banalização da atribuição de distinções que em si próprias nada distinguem. É claro que todas têm um regulamento, um júri e uma classificação que é atribuída com transparência. Mas, pergunto: será que os concorrentes sabem ao que vão? Será que o júri tem uma ideia uniforme do produto que está a classificar? Ou cada um dos jurados têm um entendimento próprio do sabor, aroma, textura, aspeto (interior e exterior)? Sabemos que a análise sensorial é sempre algo que envolve educação do gosto, treino na prova e outros procedimentos que ajudam a uma avaliação rigorosa, mas o básico não deve faltar. Definir o que é o produto ou a receita que está a ser avaliada é o mínimo. Assim, cada concorrente saberá ao que vai. Saberá que concorre dentro de determinados padrões. E o júri também tem um fio condutor que cria regras de análise.
Mas é claro que sabemos que muitos dos júris integram pessoas nem sempre entendidas no assunto. Às vezes são convidados por deferência, por respeito e compromisso institucional. Então, aparecem pessoas que nada sabem sobre análise sensorial. Provar e classificar é muito mais do que utilizar os nossos padrões individuais. Focados no que é o produto ou receita, um provador com experiência sabe que tem de se abstrair daquilo que é o “seu” gosto pessoal imbuído naturalmente dos seus preconceitos sensoriais muito relacionados com memórias ou experiências pessoais. Para além disso, há que ter cultura gastronómica. Não basta conhecer a receita do arroz doce da mãe ou aquela que a vizinha fazia, há também que conhecer a história da receita arroz doce no conjunto da doçaria portuguesa. E isso envolve treino, leitura, investigação, conhecimento.
Nem me atrevo a falar como é embaraçoso quando se pede a um chef da moda que venha avaliar e seja presidente de júri. Realmente, pode ser cabeça de cartaz pelos atributos de cozinheiro num determinado padrão de cozinha portuguesa, mas isso não faz dele especialista e entendido em todas as receitas ou produtos. Acredito que seja mais uma oportunidade de reforçar a popularidade, mas nem sempre com os resultados justos para quem concorre.
Depois, desculpem, mas como se pode comparar o que não é comparável? Ainda quando estamos a falar de uma mesma receita, ainda vá. Agora quando é um concurso de doçaria tradicional, conventual, de queijos, ou qualquer outro, como comparar produtos ou receitas que em si próprias têm identidade e vida própria? Como comparar um Rebuçado de Portalegre com um Pastel de Tentúgal? Como comparar uma queijada de Sintra com uma queijada de Vila Franca do Campo? Como comparar um Pão-de-Ló de Ovar com um de Alfeizeirão? Uma receita que se autonomiza, que ganha vida, que cria identidade de lugar não é comparável. Existe, ponto! Sente-se. Saboreia-se. Vive-se. Viaja-se com ela, conhece-se paisagens, geografias e tempos distintos, tornamos-nos amigos de cada um dos protagonistas que fez cada sedimento daquela receita, visitamos patrimónios antigos em que as paredes contam histórias que nos fazem chorar, rir, vibrar, suspirar.
Para quê as medalhas? Porque não simplesmente boa doçaria, boa pastelaria, daquela que nos enche as medidas e nos faz voltar vezes e vezes sem conta ao mesmo lugar, com a mesma ânsia, com a mesma gula? Cada receita, cada produto conta uma história de encantar. E eu gosto tanto. Não me importo com mais nada.

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