Opinião: “Talvez esteja na hora da mudança, sim”

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A quem não conhece, recomendo a audição da balada ‘Father and Son’. Trata-se de uma bela e perturbadora conversa que os mais novos ouvem hoje na versão de Ronan Keating, provando a intemporalidade daquele diálogo cantado, cheio dos anseios do pai e dos sonhos do filho, todos no mesmo tom de uma inabalável e aparente certeza. A verdade é que o facto de todos, pais e filhos, a ouvirmos provará apenas o ilusório devir que move o mundo em que nós e eles vivemos, tão semelhante àquele em que os filhos deles e os filhos dos filhos deles viverão.

A obra-mestra do célebre Cat Stevens, também conhecido como Yusuf Islam, integrava um projecto musical – Revolussia – que retratava o desejo de um jovem de juntar-se à Revolução Russa contra a vontade do seu pai, mas, tendo tal projecto sido interrompido por causa de uma tuberculose que quase mataria o jovem compositor inglês, a canção ganhou vida própria e traduziu-se num hino dos conflitos intergeracionais de todos os lugares e todos os tempos. Mais tarde, aliás, o músico, não negando o cariz autobiográfico da famosa letra, elogiaria a generosidade do seu conservador pai, que, segundo as suas palavras, o deixava voar mesmo quando dele discordava, e diria até que só tinha podido cantar a perspectiva paternal porque ele próprio a entendera também.

Percebo-o bem, eu, pois de cada vez que ouço aquela letra, sinto-me Filha e Mãe também e vou alternando o abrigo nas palavras de um ou de outro, de acordo com o tamanho dos meus sonhos ou a grandeza dos meus medos, o vero e velho conflito de pais e filhos, mestres e aprendizes.

Desde que me fiz mãe, soube sempre que a minha maior provação seria a de deixar voar as minhas crias. Seduziu-me, em muitos instantes, a ideia de lhes entregar a comida no bico e de os manter no ninho, aconchegados o bastante para dali não saírem. Parecia amor até, a reserva do meu regaço para todo o sempre, mantendo-os nele aconchegados, de asas entorpecidas…, mas não era. Era antes a tentadora serpente do Éden que de bom grado me teria levado a generosidade maternal para, em troca, me deixar um desprezível egoísmo que aos meus filhos tornaria reféns, matando-lhes desejos e sonhos.
Amar qualquer cria (filho, afilhado ou aprendiz, tanto faz) é dar-lhe o mundo, ensinando-a a voar por cima de prados fofos onde ela possa cair sem grandes mazelas, é mostrar-lhe todos os caminhos, julgando que só um a levará a bom destino, é deixá-la perder-se e aprender a retomar o caminho, sabendo que o nosso amor é maior e mais forte que qualquer perigo que a espreite, é torna-la maior do que nós.

Amar é soltar, prescindir, abdicar, é estar sempre ‘de coração aberto’, generosamente exposto às dores provocadas pelos revezes de quaisquer mudanças, aquelas de que discordámos ferozmente e as outras que sempre julgámos acertadas e apoiámos de forma convicta, porque, como escreveu o heterónimo de Pessoa, Ricardo Reis, “Não só quem nos odeia ou nos inveja/Nos limita e oprime; Quem nos ama/Não menos nos limita/Quem quer pouco, tem tudo; Quem quer nada/É livre; Quem não tem e não deseja/Homem, é igual aos deuses”.

Pois fosse eu igual aos deuses, mas não sou…, e, por isso, sobra-me a felicidade de acreditar que às minhas crias ensinei todas as manobras de voo que conheço e ainda o orgulho de lhes reconhecer a habilidade para inventarem as suas próprias acrobacias, mais belas e arrojadas do que as minhas.

Que elas, as minhas crias, sabem bem voar e até resistir às turbulências de que não podem fugir, eu já sei. Resta-me só desejar que tenham a suficiente determinação para buscarem os seus sonhos, desafiando as minhas cobardias, quando preciso for.
E assim, o meu amor, fecundo, terá gerado a audácia e a amabilidade que distingue as boas pessoas das mostras de gente que por aí se rojam. E eu, através delas, da carne e sangue que também são meus, ou do suor que com elas partilho, serei eterna.
Sim, ao contrário do que diz o pai do Cat Stevens, talvez esteja na hora da mudança…

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