Opinião: Não me rendo!

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Como me dizia um amigo há poucos dias, gosto de acreditar que sou uma mulher com consciência cívica que nunca se renderá aos poderes instalados do sistema (seja lá o que isso for). Hei-de confessar-vos que não se trata de grande valentia, pois de represálias medíocres não vou tendo medo. E, porventura, nenhum mérito terei, já que a tal suposta tesura se baseia na ideia, infantil e arrogante, de que não precisarei de favores dos ‘donos disto tudo’.

Ora, sem capas de super-heroína penduradas no armário, restam-me a fortuna de nunca ter visto ameaçada a digna sobrevivência daqueles que de mim dependem e a esperança de que tal nunca venha a suceder. Mas, na verdade, quando me olho no espelho e me confronto comigo, bem vejo a minha cobardia lá longe comodamente adormecida.

Sei bem que se todos os dias acordasse na mesma madrugada em que me houvesse deitado, depois de, horas a fio, ter preparado comida, passajado roupa ou esfregado soalho, ou acumulasse empreitadas para poder pagar as contas do mês e não ser despejada de um pequeno casebre que me servisse de lar… se assim fosse, tal como muitos, render-me-ia com certeza ao primeiro sopro. Venderia o meu voto, o meu pensamento, a minha alma, até (e só não falo do corpo, porque naquelas circunstâncias, valeria muitíssimo menos do que o espírito), estaria à mercê das reles promessas eleitoralistas que por aí pululam.

Dito isto, como felizmente não luto pela subsistência, não abdico de guerrear pela crítica liberdade de pensamento e vou-me abespinhando, a cada dia, por mim e por aqueles que não o podem fazer.

Aos outros, à claque habitual que grita ‘Vivas’ a plenos pulmões, afiançando que nunca antes vivemos em tamanha harmonia e prosperidade, eu canto as palavras do Sérgio Godinho à morte mafarrica no Coro das Velhas, “não te temo, ó camafeu, conheci piores infernos do que o teu”, já que, sem xaropadas ou salamaleques, “cá se vai andando c’o a cabeça entre as orelhas”.
De volta a quem me importa, espero continuar sempre, erguida, de coluna alongada, sem curvaturas devidas a sujeições, dependências ou acatamentos, que me fizessem vergonhosamente rendida. Será isso sinal – repito – não de uma particular valentia, mas tão-só da consciência do dever cívico de não prescindir da graça da Liberdade.

E, porque, não tendo valor (no sentido de que o mesmo é absoluto e incalculável), a Liberdade tem um elevadíssimo (e impeditivo) custo para muitos, é nosso dever lutar pelos direitos dos outros, de todos aqueles que não podem ser tão livres quanto nós.

Deixemo-nos das useiras hipocrisias! Podemos exigir ao trabalhador que ganha o ordenado mínimo que não se resigne e exerça o seu direito à greve para reivindicar maior dignidade? Ou é a nós, àqueles a quem não falha o pão e nem a cama e a roupa lavada, a quem compete pugnar por uma governação responsável que faça crescer a economia do país e que justamente regule a redistribuição daquela riqueza?

Como podemos exigir consciência cidadã, independência, isenção, a quem não pode parar, a quem tem que ganhar a cada dia o pão do dia seguinte?

Alguém pode convictamente afirmar que não cederia a pressões e nem calaria críticas, se contasse cada cêntimo para pagar a renda do mês?

Há alguns valentes, sim, verdadeiros heróis, capazes de dar o mais íntimo de si, mas são raros. Aos homens vulgares (nos quais me incluo), só é exigível um comportamento compatível com o grau de dignidade que a vida nos oferece… é essa a medida da nossa liberdade, mas essa impende sobre nós como um dever de que não nos devemos esquivar.

Em nome dos menos livres, por uma sociedade solidária, não nos calemos, não nos rendamos, não aceitemos esta hinduização da sociedade, esta endogamia social que nos divide em castas que, como sempre, acabam num grupo de párias, a quem culpamos de tudo, gente a quem negamos a possibilidade de ser gente, gente que apenas serve para servir a gente.
Inquietemo-nos, por favor, e sonhemos juntos em nome da liberdade de todos.

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