Há 50 anos Linhares Furtado realizou em Portugal o primeiro transplante de um órgão vital. No próximo dia 20 de Julho celebrar-se-ão 50 anos do que foi uma das páginas mais brilhantes da Medicina portuguesa – a realização do primeiro transplante de um órgão vital (rim), em Portugal.
Na realidade, foi no dia 20 de Julho de 1969 que o Professor da Faculdade de Medicina, Alexandre Linhares Furtado efectuou nos Hospitais da Universidade (HUC) o primeiro transplante renal no nosso país, promovendo, assim, a medicina portuguesa para o nível da dos países medicamente mais desenvolvidos. Não é demais enaltecer este feito, já que a transplantação foi considerada o maior progresso da Medicina, dos últimos 60 anos e, por isso, apelidada por Peter Morris como “O Milagre Médico do Século XX”. Tratou-se de um notabilíssimo marco da medicina e da ciência portuguesas que se deveu, acima de tudo, às capacidades técnico-científicas de Linhares Furtado, que, com um extraordinário trabalho, em que evidenciou excepcionais qualidades de inteligência, de competência e de liderança, introduziu a transplantação no nosso país, tendo-a, posteriormente, desenvolvido e inovado o que lhe valeu, além de prestígio internacional, ser reconhecido como o “pai” da Transplantação, em Portugal.
Recorde-se que, em 1969, os transplantes renais se tinham iniciado há pouco mais de 10 anos, em apenas dois países, Estados Unidos e França, de forma praticamente experimental, e só entre gêmeos idênticos. Só a partir de 1960 a transplantação começou, lentamente, a expandir-se. Tudo era novo e revolucionário: novos conceitos científicos, uma nova ética médica, cirurgia inovadora, tecnologia sofisticada e terapêutica médica nunca antes experimentada. As dificuldades anteviam-se enormes, agravadas pelo atraso do país, mas nada demoveu Linhares Furtado. A organização de todo este complexo processo exigiu: o início da hemodiálise em Coimbra que Linhares Furtado conseguiu graças à Fundação Gulbenkian que ofereceu aos HUC um monitor de hemodiálise; a realização dos estudos de compatibilidade imunológica (antigénios/anticorpos) essenciais em transplantação e ainda incipientes no nosso país pelo que se efectuaram em Lyon, França; necessidade de suporte legal para colheita, em pessoa viva, de órgão para transplante, que não existia, e que levou Linhares Furtado a procurar o apoio de prestigiados Mestres de Direito de Coimbra; criação de condições para a implementação de cuidados intensivos de antissepsia e de assepsia no bloco operatório e internamento; execução de dois delicados actos cirúrgicos (dador e receptor) e seguimento dos respectivos pós-operatórios de alto risco. Esta epopeia, tão complexa como gratificante, teve o seu epílogo feliz com a realização, nesse dia 20/07/1969, do transplante de dador vivo nos HUC – o rim foi retirado de uma irmã (nefrectomia na dadora) e transplantado no irmão doente, com ambas as cirurgias a serem conduzidas por Linhares Furtado. Depois deste feito notável em 69, Linhares Furtado continuou a sua luta pela transplantação e em 1980 conseguiu, com a colaboração do seu colega, também dos HUC, Prof. Carrington da Costa e outros, que o conceito de morte cerebral fosse considerado na definição de morte e que o respectivo diagnóstico passasse a ser efectuado, permitindo, assim, o aproveitamento de órgãos de dadores falecidos (em morte cerebral) para transplantes de rim, fígado, pâncreas e intestino, todos iniciados por ele em Coimbra, e coração e pulmão, começados em Lisboa. Na verdade, tudo o que diga respeito à transplantação no nosso país passou por LF que, com a sua sabedoria, criatividade, talento e capacidade de inovação se tornou no “homem imprescindível” de Bertolt Brecht: “Há homens que lutam um dia e são bons. Há outros que lutam um ano e são melhores. Há aqueles que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis”.
A obra que Linhares Furtado deixou na transplantação não tem na história da medicina portuguesa nada de comparável, e por isso constato que o extraordinário trabalho do Mestre coimbrão nunca teve o reconhecimento devido a quem como ele atingiu o topo da transplantação a nível mundial.
Para caracterizar personalidade tão fascinante, socorro-me de Platão: “Na sua alegoria dos metais, Platão classificava os homens em ouro, prata e chumbo”. Alexandre Linhares Furtado é ouro: na sua educação, na sua ética, na sua cidadania. Ouro como médico, como universitário, como homem de ciência e de cultura e como criador. Ouro como português.
Bem haja Prof. Linhares Furtado.