No “Céu” – o ateliê onde passa os dias em gestos solitários –, cabe um sorriso leve, a palavra demorada na pronúncia a que “os tontos chamam torpe”, a promessa da obra que há de nascer.
É na rua Almada, numa artéria paralela à Avenida dos Aliados, no Porto, que António Bessa, pintor, nos recebe – bata azul salpicada pelas cores da tinta, um bolso a guardar-lhe as espátulas, boina preta a coroar a cabeça. Além das pinturas – umas prontas, outras começadas, outras que hão de ser, – o ateliê exibe, numa sala mais escondida, obras de alunos a quem o mestre tenta ensinar a arte de pintar. E há sempre música. Foi por ali que, há poucos meses, entrou João Gabriel Silva, ex-reitor da Universidade de Coimbra (UC).
O encontro surpreendeu-o. “Quando ele entra aqui e se identifica como reitor da UC – eu pensei logo: o berço da sabedoria entrou na minha caixa de tinta” – é assim que o pintor se refere ao seu ateliê.
“Foi a sensação que eu tive: o berço da sabedoria vir buscar uma obra minha para figurar na reitoria”. Naquele primeiro encontro, João Gabriel Silva fez um único pedido: queria estar a sorrir no quadro que iria ficar exposto na galeria dos reitores, junto aos que o antecederam no cargo. O motivo era claro: durante os oito anos em que percorreu aquele corredor da galeria, teve sempre a companhia dos rostos, maioritariamente sombrios e soturnos, dos antigos reitores. Por isso, fez aquele pedido, mesmo tendo a “consciência de que pintar alguém a rir é mais difícil”. “Embora tenha passado por momentos menos fáceis, um sorriso mostra que há coisas boas”, referiu o antigo reitor em inícios do mês de maio, quando foi apresentada a obra.
“Gosto muito do resultado e revejo-me seguramente naquele sorriso”, diria João Gabriel Silva.
O processo de criação do retrato oficial – que rasga uma tela de 1,20 metros por 90 centímetros – demorou 15 dias consecutivos, porque “o reitor precisava de quadro com alguma urgência”.
“Pedi-lhe que me facultasse uma fotografia e mandou-me apoio mágico. Ele foi acompanhando o processo de elaboração à distância, através de fotografias que eu lhe enviava. Tem a sequência toda da obra”, conta. Naquelas duas semanas, o mestre ouviu tunas académicas. Através delas, as mãos bailaram até àquele sorriso.
No retrato, o semblante de João Gabriel Silva surge sobre um fundo por terminar. “Em cada quadro fica a alma de quem pinto, mas a minha também lá está, às vezes esburacada: por isso é que há partes de tela em branco”, explica o mestre.
No centro de toda a obra de António Bessa estão as pessoas. A sua forma genuína de gostar delas, como se ao pintá-las não pudesse deixar de lhes transmitir a dimensão espiritual.
É a tal ligação ao sagrado. Um dia, ainda jovem, o pintor sonhou que estava numa loja e que duas pessoas o tratavam por mestre. Anos mais tarde, o sonho concretizava-se. “Estava numa loja de pintura e entraram duas mulheres que precisavam de ajuda com uns materiais. Durante a nossa conversa, uma delas tratou-me por mestre e quando nos despedimos, disse-me o seu nome: Madre de Deus. Uns anos mais tarde, os meus alunos começaram a tratar-me por mestre – o título maior da pintura. E eu lembrei-me daquele sonho e daquele episódio. E pensei para mim: seria um anjo?”. Na altura, o ateliê não tinha nome. Começou a chamar-se “Céu”.
Sorri quando regressa a esse universo. Logo ele, que nunca pensou chegar tão longe. Nasceu há 66 anos, na freguesia do Bonfim, e nunca teve outro ofício. Sem qualquer antepassado ligado às artes, lembra-se de ter começado a pintar ainda em criança quando, com seis anos, as mãos teimaram em perscrutar o desenho, animadas por um pedaço de carvão que encontrou numa mina onde costumava brincar com uns amigos.
Na sua obra ainda hoje usa o carvão, a que “mistura acrílico e óleo”.
Em miúdo, já vendia quadros, sobretudo retratos. Pintava também os cartazes dos filmes que estavam nos vários cinemas. Aprendeu sozinho. “Cheguei a pintar na rua, para os serviços de espetáculos, cenógrafos, cartazes. Pintava de tudo, no princípio para poder sustentar-me”, lembra.
Por isso, apesar de ter frequentado as Belas-Artes do Porto, que não concluiu, prefere dizer que é “um alquimista e não um autodidata”.
“Todos nós, nas nossas vidas, experimentamos coisas. Nunca estamos concluídos”, adianta. Apesar da insatisfação, diz que pouco lhe falta cumprir. “Faço o que gosto. Tenho todas as razões para ser feliz”, diz com a simplicidade de quem faz da arte um modo divino de desenhar a vida.
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