Calhou-nos por muita fortuna poder compreender as nuances daquilo que se escreve na margem de lá do Oceano, lá longe onde umas naus de há muito tempo conseguiram chegar. E se alguma semente ali deixámos, “além da sífilis, claro”, foi a desta língua que se tropicalizou, mesticizou, permaneceu e deixou-se moldar por por aquele povo e pelos seus artistas.
Alguns séculos depois de ter tido o seu quinhão de maltrato, Camões havia de gostar de saber que a lista dos distinguidos com o prémio que leva o seu nome cruzaria caminhos com a obra de Francisco Buarque de Hollanda. Havia de gostar de perceber que este Chico Buarque é o das canções que são banda sonora de milhões de vidas, dos romances que são companhia de outras tantas, dos posicionamentos a favor dos “Pedros Pedreiros” do nosso mundo.
A primeira canção de Chico Buarque que conheci foi a “A Banda”, que me entrou pela infância adentro pela voz da minha mãe, que gostava de cantar para entreter o tempo. Foi a primeira vez que ouvi cantar um mundo do avesso, cabeças viradas ao som da banda que cantava “coisas de amor”. Fiquei com a referência, que viria desenvolver mais tarde, já no tempo em que se esperava a abertura da porta da Novalmedina para poder comprar o LP do Chico Buarque no dia em que chegava às lojas. Retenho ainda a sensação do caminho entre a discoteca e o gira-discos, o tempo de ler com avidez, no 4 – Cruz e Celas que me levava a casa, os poemas, de música ainda desconhecida, de “Mulheres de Atenas”, “Meu Caro Amigo”, “Cálice”, “O Que Será”, “Pequeña Serenata Diurna”. Por Chico Buarque conheci os nomes das ruas e das praças do Rio de Janeiro, muito mais tarde reencontradas nas placas dos autocarros da maravilhosa cidade.
Por Chico Buarque vamo-nos lembrando dos humanos sentimentos, entre a mágoa e a paixão, entre o desespero da Rita – cuja dor não é notícia de jornal – e o voo de Beatriz sobre a cabeça dos espetadores. Mil personagens para outros tantos modelos de gente, num mundo em que, de Geni e do comandante do Zepelim, se denuncia a desigualdade e qualquer outro mecanismo transgressor de todas as leis da justiça. Por Chico Buarque chegámos à cultura do povo brasileiro, desde o Sertão à Rocinha. Acompanhando os seus passos, fixámos o percurso da História do Brasil e de Portugal desde as lutas coloniais aos nossos dias – 25 de Abril naturalmente incluído – naquele tempo de ainda ditadura do lado de lá.
Chico Buarque e os seus personagens são os protagonistas do Brasil que soma à Humanidade a grande literatura, a grande música, o teatro e o cinema que contam histórias da nossa gente. O resto – da boçalidade ao desconcerto das vidas – há de ficar para a História uma memória suja, mas passageira. Como proclama o galardoado do Prémio Camões (agora), cantor gostado por muitos milhões por aí afora (desde há muito), dirigindo-se aos donos dos chicotes deste mundo, “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”!