Opinião: À Mesa com Portugal

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Em ano de 7 Maravilhas do Doce vamos ter um Verão animado. Por muito que se perceba que pontuar doces e atribuir lugares cimeiros a alguns deles é tarefa difícil, ninguém se irá furtar a esforços para atingir resultados. É claro que discutir a importância de uma qualquer cavaca, arroz doce, pão-de-ló, pão doce ou outro, é não perceber que cada um deles, na sua região, no seu território, representa o tangível de uma tradição, de uma história, de um contexto. A história de cada um é tão nobre como nobre era a intenção de uma mãe em adoçar a boca aos seus em dia de festa. E às vezes o caminho era simples, era com o que se tinha à mão. O resto era uma enorme convicção de que é possível fazer o muito com o pouco. Por isso, temos tantas derivações de uma mesma receita com os acrescentos e reduções que o orçamento permitia ou exigia. Atrevo-me a dizer que se faziam milagres e era o pormenor que fazia a diferença. Porque cada um sente o doce à sua maneira, ou melhor, à maneira que foi habituado desde o berço, espero não ouvir “o meu doce é o melhor do mundo…”. Pelo respeito pelas nossas mães e por todas as cozinheiras que nos puseram à mesa o que tinham, vamos lá refrear os ímpetos.
Aproveitando a celebração do doce que se avizinha, era bom pensarmos sobre os exemplos de doçaria e pastelaria que vamos encontrando por aí e que nem sempre honram a tradição doceira dos portugueses. Do bolo de arroz ao pastel de nata passando pelos doces conventuais ou pela pastelaria fina é caso para dizer que a versão doce da nossa alimentação anda por muitos maus caminhos. Para constatar isso nem é preciso provar, basta olhar para as vitrines. O brilho, a cor e a textura que aparentam dizem-nos logo se a arte daquela doçaria saiu das mãos de alguma doceira ou pasteleiro ou de um saco em formato mix. Em tempos passados falávamos das mãos, do jeito, da arte, hoje falamos de misturas perfeitas. Antes, era pasteleiro quem tinha jeito, quem aprendia na repetição a eliminar o erro, a imperfeição. Hoje, temos fazedores de “bolos” que têm na indústria os fornecedores para todas as soluções. Outrora falava-se das especialidades desta ou daquela pastelaria, hoje é a diversidade que enche o olho. O problema é que quando chegamos à prova nem sempre o sabor combina com o aspeto.
Se comer um bom pastel de nata é uma odisseia, já um bom bolo de arroz é missão impossível. Quanto às primeiras, percebemos que na grande maioria, ainda que tenham o aspeto tostadinho e estaladiço, o interior é habitualmente um creme esbranquiçado e sensaborão. Já o segundo, para nossa grande tristeza, sabe a óleo, deixa uma gordura estranha na boca e azeda-nos o estômago. Longe vão os tempos em que comer um bolo de arroz era um ato inocente e cheio de sabor e comer uma nata era ceder à tentação depois de um namoro longo e dedicado. Perdemos a essência da nossa pastelaria, ganhou a indústria que encharca o mercado com misturas milagrosas que permitem fazer tudo em menos de nada. Não deixa de ser irónico que a variedade de opções nas pastelarias não represente maior poder de escolha. Tudo sabe ao mesmo com a dominância do aroma a baunilha com a presença de vanilina.
Tudo isto arrepia porque cada vez mais há menos capacidade de escolher diferente e percebe-se que estamos a ficar demasiado habituados a esta realidade. Somos cúmplices, de fato. Compreende-se. É fácil ceder à tentação, à receita empacotada, àquela que não precisa de mão treinada e experiente, àquela que sai sempre bem mesmo quando o tempo e os ingredientes não ajudam. Com tudo isto pergunto: e os pasteleiros? O que pensam disto? Percebem que esta realidade fragiliza a sua profissão? Não basta formar pasteleiros, há que criar o debate em torno do que é hoje a pastelaria e perceber quais os caminhos que queremos para uma profissão que é nobre. Será que esquecemos a alquimia dos pontos do açúcar e da sua mistura com as gemas de ovo? A magia da farinha que nos leva até ao cereal e à moagem?
A realidade está aí. Corremos atrás da suposta “tradição” como tábua de salvação para afogar as mágoas de não fazermos como “antigamente”. Ao invés, vamos falar de doçaria e de pastelaria? Imprescindível chamar os protagonistas da doçaria e da pastelaria, da formação, da indústria. Há um caminho a fazer e eu sei que estamos preparados para o fazer. A doçaria e a pastelaria merecem.

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