Em dia de comemoração de Abril, hei de confessar-vos os meus ‘mixed feelings’, que é como quem diz, um misto de sentimentos porventura contraditórios entre si, que me enche de alegria e desassossego.
Por um lado, a consciência de ter crescido num país onde posso gritar o que me vai na alma (como se vai percebendo por estes escritos semanais) enche-me de júbilo.
Gosto de caminhar de costas direitas, perpendiculares ao chão que me sustenta, e desprezo a sabujice de quem opta por uma marcha quadrúpede, em troca do alimento que lhe surge facilmente à boca, o que me faz saber de que lado estaria eu se a Revolução dos Cravos se tivesse atrasado uns poucos anos, forçando-me a lutar contra aquele odioso obscurantismo que nos apoucou.
Por sorte e obra de uma mão-cheia de bravos, a quem sempre darei graças, não precisei de pôr à prova a minha própria bravura.
E assim, por estes dias revisito alegremente umas quantas canções de intervenção que me lembram a boa sorte de ter crescido em liberdade e me enchem de gratidão. Daquela noite, recordo a música de bom augúrio que anunciou a marcha dos Capitães, primeiro pela voz do Paulo de Carvalho em ‘E depois do adeus’, numa bonita balada inspirada nas cartas de amor de um soldado na Guerra do Ultramar, e, mais tarde, entoada pelo Zeca Afonso, pela famosa ‘Grândola Vila Morena’ que perpetuaria a grandeza da vontade popular.
E é bom reviver a toada daquela bendita madrugada que nos deixou a lição de uma revolução pacífica, simbolizada pelo cravo no cano da espingarda de Salgueiro Maia, e que trocou o medo imposto pela ditadura pela boa nova do nascimento de uma nova esperança chamada democracia.
Mas a verdade é que, mercê dessa mesma liberdade por aqueles dias conquistada, hei de falar-vos ainda do desassossego que me vai apoquentando, fruto da preocupação com o estado de saúde do nosso regime e da cisma com as ameaças que o velam à espera da sua vez.
Depois do Zeca, do Tordo, do Zé Mário e do Godinho, do Jara, da Parra e do Buarque, hoje, a música de protesto é outra, cantada por um povo que pouco ordena, afinal, e que, podendo gritar o que lhe vai na alma, continua a reclamar a liberdade maior de quem não cede ‘à desagregação, à manipulação, à arma dos oportunistas, sustento dos ignorantes que cria a destruição dos indivíduos’. É Valete, o rapper português descendente de santomenses, que suplica por políticos leais à verdade, que com ela façam um pacto de ‘Monogamia’, sem as vergonhosas traições com as mentiras do costume, e é mister ouvi-lo, tal como ao rapper do Vale de Chelas, Sam The Kid, o autor de ‘Abstenção’, que também grita por ‘alguém credenciado, com moral’, que o faça votar e cuja campanha eleitoral mereça a sua atenção, pois só votará ‘na verdade e não a vê em nenhum lado’.
Infelizmente, parece que a nossa democracia tem sido pouco fértil, tem parido poucos democratas, gente monogâmica, capaz de se comprometer só com a verdade.
E, agora, para que Abril vença, ‘ou vai ou racha’.
É imperioso acabar com as traições reiteradas, as promessas vãs, o favorecimento dos pares, as negociatas escondidas, é urgente que os eleitos rompam de vez com a mentira e se comprometam com os seus eleitores.
É preciso que a Revolução dos Cravos seja festejada hoje e sempre, em cada dia, por todos os protagonistas, em cada uma das suas funções, juntando opiniões, debatendo propostas, concertando estratégias, questionando o sistema, para que o povo saia do gueto da abstenção onde tem estado esquecido, pois só esse exercício diário tonificará os músculos da democracia que hoje jazem lassos e cansados.
Para que Abril cumpra o seu legado, haja, por favor, quem troque a desilusão pela confiança e devolva aos ‘portugueses de coração e raça’ a esperança numa democracia onde o povo, unido, jamais seja vencido.
‘Agora, ou vai ou racha’!
Filomena Girão escreve à quinta-feira, semanalmente