Opinião – Peço a palavra!

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Não rezo há muito, já o escrevi. Perdi, muito cedo, a fé que nos junta as mãos e as ergue ao alto, e, por isso, há muito que não rezo e nem me ajoelho em genuflexórios. Mas ainda lhe sinto a falta e, conforme posso e sei, celebro todas as mensagens de esperança, sem olhar à sua origem ou à gramagem dos envelopes que envolvem a missiva.
Por estes dias, curvei-me, emocionada, a uma verdadeira oração colectiva, nas ruas da capital francesa, com a população a cantar a Ave Maria, na esperança de assim serenar as lavaredas que consumiam a Igreja de Nossa Senhora de Paris, a famosa Notre-Dame.
Victor Hugo já tinha salvado a Catedral, chamando a atenção para a sua degradação, o que levaria ao restauro iniciado nos finais do século XIX. Mas a verdade é que, depois do seu romance, ninguém mais voltou a imaginar a grande Igreja vazia, sem os fantasmas do Quasimodo, da Esmeralda ou do Frollo, e esta imagem, especialmente depois da animação da Disney, passou a povoar a memória de todos, fazendo-nos olhar de esguelha para as Gárgulas, à espera de um gesto seu que denunciasse o esconderijo do pobre Corcunda.
É assim uma obra-prima, a que resta dentro de nós, depois de sair dos escaparates das livrarias, e nos faz rezar, num cântico ou em silêncio, apaziguando demónios e evocando divindades. E foi bonito o coro de vozes, unidas num esforço comum para salvar um pedaço da História que ameaçava ruir.
Oremos, salvemos os padrões de pedra, sim, mas não esqueçamos os outros, feitos de sonhos, memórias e valores.
Por cá, hoje, à hora a que escrevo estas linhas, a cidade comemora o cinquentenário do famoso 17 de Abril que dá nome ao pequeno anfiteatro das Matemáticas na Universidade de Coimbra. Foi ali que um dos nossos se levantou e pediu a palavra. Contra o poder de um Estado totalitário, o jovem Alberto Martins não prescindiu da liberdade por que lutava e não se vergou. Não chegou a falar, foi preso pela PIDE naquele mesmo dia, mas, no caso, o gesto foi tudo e deu origem à maior revolta estudantil em Portugal. É esta a herança que quero hoje aclamar, fazendo-lhe justiça, pedindo a palavra em memória de um Abril tão evocado quanto maltratado.
E, por isso, hoje, em particular, peço a palavra.
Num mundo pródigo em ‘fake news’, o anúncio da abertura de concurso para guardas florestais que tomou conta das redes sociais nos últimos dias parece uma piada de mau gosto, à laia de um qualquer buraco negro, capaz de engolir coxos, vesgos e carecas.
Em nome da boa aparência, o Estado exorta ali os homens e as mulheres esbeltos e escorreitos e exclui todos os enfermos, excomungando-lhes as quedas de cabelo e as borbulhas, as doenças de nervos e as fístulas nos genitais, as hemorroidas e as doenças parasitárias. Ao diacho com as lombrigas e as bichas solitárias!
Poderia dizer-me divertida ou sarcástica, porque o assunto parece cómico, mas, na verdade, aquele chorrilho de disparates é trágico e exige que tomemos a palavra.
O Estado, sem pingo de vergonha, exclui ainda candidatos com tumores (benignos e malignos, para não ser acusado de alguma discriminação no que às neoplasias respeita), e só às grávidas e aos infectados com HIV, que também constavam do anúncio inicial, foi, entretanto, dada carta de alforria.
Já desconfiávamos que ‘este país não é para velhos’ (o oscarizado filme dos irmãos Coen, baseado no romance homónimo do pulitzerado Cormac McCarthy, já o mostrara), mas dos mais vulneráveis o Estado Social deveria cuidar. E, afinal, põe-nos fora da sua casa, presos na fina malha de uma rede que nos livrará dos mais feios, deformados e doentes, uma outra classe de ‘sub-humanos indesejáveis’ semelhantes aos que o líder da Alemanha nazista quis exterminar.
Peço a palavra!
E oremos, em uníssono, pelo monumento de memórias e valores que nos fazem Homens!

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