Opinião: O doente e o guarda-chuva

Posted by
Spread the love

O doente é o único motivo para a existência de profissionais de saúde. As necessidades a cada minuto, de acordo com a condição de saúde de cada um, devem determinar a organização dos cuidados de saúde.

A medicina moderna é complexa e exigente, pelo perfil dos doentes, a tecnologia, as condições de trabalho e expectativas da sociedade. O SNS está frágil e as condições em que prestamos cuidados de saúde são muitas vezes precárias, parcas em recursos, impedindo-nos de dar o melhor. Estas circunstâncias são propensas ao surgimento de eventos adversos – acidentes, complicações, erros – que põem em causa os resultados em saúde. Dizia Atul Gawande que “no cerne da prevenção do erro está o reconhecimento da nossa falibilidade”. O SNS está cada vez mais falível. Como recuperar disto?

A governação clínica é uma ferramenta nascida no Reino Unido, uma abordagem integrada dos cuidados de saúde em que as organizações são responsáveis por atingir e manter a prestação de cuidados com qualidade e em segurança, através da melhoria contínua. Surge a partir da consciência de que muitos eventos adversos são evitáveis, sobretudo por fatores organizacionais e não por falta de preparação dos profissionais.

Imaginemos um guarda-chuva aberto, em que cada fatia de tecido limitada pelas varetas constitui um campo de ação da governação clínica.

Esta ferramenta implica definir padrões de qualidade (pela medicina baseada na evidência), aplicando-os e monitorizando-os. Implica assumir as auditorias como um parceiro, permitindo um olhar exterior, apontando pontos fortes a manter e oportunidades de melhoria, traçando um rumo.

Implica envolver os doentes, cuidadores e público em geral, percebendo as suas necessidades e como as instituições se devem adaptar às mesmas (e não o oposto). Implica lidar com as queixas de modo eficaz, aprendendo com as mesmas.

Implica envolver os profissionais de saúde, com gestão de recursos que premeie o mérito, que cative e fixe talentos, que conheça e pondere os interesses dos profissionais em torno do doente. Implica incentivar a educação e formação contínuas, com feedback do desempenho, para um desenvolvimento profissional que acompanhe a evolução da ciência. Implica comunicação, boa liderança, trabalho de equipa e investimento na investigação, pilar do desenvolvimento.

Implica gestão de risco, conhecendo e prevendo os eventos adversos e minimizando os danos, com resiliência e aprendizagem contínua. Implica a utilização diária e enraizada de indicadores clínicos, estimulando a eficácia clínica. Implica o foco na segurança do doente, reforçando a informação em saúde e o consentimento informado e esclarecido.

Como aplicar estas ferramentas no SNS de hoje?

Com a capacidade estratégica das organizações, conscientes de que o sucesso não depende apenas dos profissionais, mas das condições de bem-estar no trabalho e da organização interna.

Implica que os decisores políticos assumam a necessidade de mudança e encarem a governação clínica como essencial para melhorar os cuidados de saúde em Portugal. Com uma estratégia nacional, há que juntar os profissionais, explicar os conceitos, definir metas e estratégias adequadas a cada serviço. Implica uma mudança cultural, com um modo de estar muito diferente do que existe.

Se uma das varetas do guarda-chuva se partir ou o tecido rasgar, o doente não está protegido. Não cumprimos, assim, a nossa missão. Gomes da Silva dizia que a governação clínica é “fazer a coisa certa para o doente certo, no tempo certo, de maneira adequada de forma a atingir os melhores resultados possíveis”. O doente no centro de tudo, debaixo do guarda-chuva do SNS.

 

Parceria Ordem dos Médicos/Diário As Beiras

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

*

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.