O “texto é que manda” na adaptação de João Botelho de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”

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Foto Arquivo

O realizador João Botelho está adaptar “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, um filme onde o “texto é que manda”, para fazer jus à obra de Saramago em que a “Língua Portuguesa é levada ao extremo da formulação”.

No novo filme de João Botelho, o “texto é que manda”, não estivesse o realizador a trabalhar com alguns dos maiores símbolos da literatura portuguesa – o Nobel José Saramago, o poeta Fernando Pessoa e o seu heterónimo Ricardo Reis.

João Botelho reconhece o “risco” de trabalhar uma obra que é também ela um “ato de coragem” de José Saramago, ao evocar Fernando Pessoa e Ricardo Reis, que regressa a Lisboa um mês depois de o seu ‘criador’ ter morrido, com o Nobel a aproveitar o facto de o poeta não ter deixado uma data de morte do seu heterónimo.

A adaptação ao cinema da obra é “mais ou menos rigorosa”, e o texto assume-se como “a coisa mais importante do filme”, refere o cineasta.

“Os atores são muito bons, mas o decisivo, o personagem, é o texto”, disse à agência Lusa o realizador, por entre uma pausa nas rodagens em Coimbra, em que o Hotel Astória, inaugurado nos anos 1920, faz as vezes de Hotel Bragança, onde Ricardo Reis se instala assim que chega do Brasil.

Se na obra escrita, José Saramago trabalha a Língua Portuguesa, entrelaçando o diálogo mais comum com a poesia – cujas referências não se esgotam em Fernando Pessoa e Ricardo Reis e que vão até Cesário Verde ou Camões -, João Botelho quer frisar isso mesmo com a adaptação.

“É dos romances mais engraçados do ponto de vista da Língua. [Saramago] pegou no Pessoa e a Língua Portuguesa é levada ao extremo da formulação, em vários estratos sociais, a do Pessoa, a do Ricardo Reis, a da Lídia [empregada no hotel]”, nota o realizador.

O ator Luís Lima Barreto, que interpreta Fernando Pessoa, sublinha a forma como o poeta e o seu heterónimo, apesar de estarem próximos da poesia, apresentam um discurso “muito oral”.

Ou seja, não se está perante “dois bonecos”, duas imagens fixas, antes dois “poetas” que têm muita “conversa do dia-a-dia”.

“Deram-me o guião há dois meses e sei o discurso todo de cor, porque entra tão facilmente”, constata o ator, que foi professor de Português no ensino secundário durante 30 anos e que, por causa do filme, redescobriu o livro “fora de série” de Saramago.

Também Chico Diaz, ator brasileiro que interpreta Ricardo Reis, salienta as flutuações de um guião que tanto oferece “instâncias bem terrenas, materiais e mortais”, como situações onde “a poesia se eleva”.

Para o ator brasileiro, o desafio é trabalhar o heterónimo, que, na verdade, “não é nada”, e abordar a poesia “como se fosse uma questão normal, quotidiana”, num equilíbrio, entre “a poética e o real”, ao mesmo tempo que se trabalham quatro camadas: “Ricardo Reis está sob as rédeas de Pessoa, Pessoa sob as rédeas de Saramago e Saramago sob as rédeas do Botelho”.

Catarina Wallenstein, que interpreta Lídia – uma empregada de hotel “com consciência política” e de “carne e osso”, que se envolve com Ricardo Reis – salienta a responsabilidade de se estar “a mexer com pedras basilares da cultura portuguesa”.

“É sobretudo não pensar demais nesse assunto e confiar. Acho que é um voto de fé. Confiamos todos uns nos outros para estarmos em aventuras desta envergadura. Tal como o João [Botelho] tem a confiança de nos chamar a nós, nós temos de fechar os olhos e embarcar na onda dele”, afirma à Lusa a atriz.

A adaptação da obra de José Saramago marca também uma opção de João Botelho em filmar a preto e branco, não apenas por uma questão pragmática de ser “mais fácil” filmar a Lisboa de 1936 nesse registo, mas também por uma “ideia de voltar ao início do cinema”, realça o realizador.

“É um regresso àquela pureza inicial do cinema. O cinema hoje está muito corrompido, por cores, por planos, com três mil planos num filme e cinco mil efeitos sonoros, e ninguém vê nada e ninguém ouve nada”, critica.

Para João Botelho, “o que é verdade no cinema, é o que as pessoas sentem quando o veem. Verdadeiro é só o choro, o riso, o aborrecimento, a inquietação, a alegria das pessoas. Hoje, o divertimento ganhou ao pensamento, o movimento ganhou ao tempo. Eu ainda sou do cinema do tempo”.

“Hoje, quando as pessoas vão ver uma pintura, são capazes de estar duas horas numa fila para entrar num museu e depois não gastam mais de dois segundos a ver um quadro e ainda se fotografam de costas para a pintura. O eu está muito presente e precisamos de voltar a uma ideia de nós, de coletivo. Este texto também é muito sobre o ‘nós’, nós portugueses, numa época certa, mas que nos remete para hoje”, conclui.

Antes de entrar na obra de Saramago, João Botelho já adaptara, inspirou-se ou fez versões cinematográficas de obras literárias de autores como Agustina Bessa-Luís (“A Corte do Norte”), de Fernando Pessoa (“Filme do Desassossego”), Fernão Mendes Pinto (“Peregrinação”) e Eça de Queirós (“Os Maias”), além da inspiração de Charles Dickens para “Tempos Difíceis”.

A adaptação da obra de Saramago é produzida pela Ar de Filmes, numa coprodução com a brasileira Raccord, e conta com o apoio da RTP e do Instituto do Cinema e do Audiovisual.

Além de um filme, a adaptação vai originar uma série de cinco episódios a ser emitida na RTP, informou o produtor Alexandre Oliveira, acrescentando que o orçamento é de cerca de dois milhões de euros e que a estreia comercial está prevista para 2020.

As filmagens vão decorrer até ao final de maio, sendo grande parte do filme rodado em Lisboa.

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