O termo “jagunço” chegou ao vocabulário dos portugueses pelos idos de 1975, a bordo de uma novela brasileira – “Gabriela, Cravo e Canela”, adaptação televisiva do romance de Jorge Amado. Negro Fagundes, o jagunço da história, limitava-se a cumprir ordens. Não matava de vontade sua, desconhecida que lhe era maldade maior do que a dos seus semelhantes, um entre os muitos que fugiam da fome do sertão, vendendo na cidade a habilidade que neles se encontrasse. Fagundes sabia matar. Mas a sua ação era, por assim dizer, assunto de mãos. Quem matava realmente era Melk Tavares, fazendeiro do cacau, “coronel” das terras brasileiras de Ilhéus, inventor de sofrimentos e de mortes, explorador do trabalho humano e da fertilidade do chão.
Ao assistir, um dia destes, à barragem de perguntas de um repórter televisivo a Jerónimo de Sousa, em extrapolado assunto da vida do seu genro, lembrei-me de Fagundes. Fugido à fome do desemprego, ou desejoso de agradar ao seu coronel, o jovem interpelador (não direi jornalista por pudor, pela consideração de que a profissão é merecedora) golpeava uma e outra vez o corpo de que sangue não saía – por ausência de culpa, por ferida dignidade -, o olhar da vítima tingido de espanto. Mas deste novo Fagundes só a mão era sua, ele próprio figura sem nome, voz sem rosto – três letrinhas apenas a identificar o coronel que ali o tinha posto.
Ainda a procissão ia no adro. É assim de tempos a tempos, como daquela vez em que acharam o deputado António Filipe numa molhada de eleitos que fazia questão de manter as indevidas distâncias dos seus eleitores, tomando assento na classe executiva dos aviões, remetendo a fatura para pagamento pelos passageiros de turística. Azar dos azares, concluiu-se que António Filipe escolhia sentar-se nas filas dos desabonados, pelo que a provocação feneceu ali. É, porém, cega a fúria dos coronéis. E diligente a jagunçagem, na caça a comunistas nos bancos dos réus das negociatas, nas páginas da vergonha das ajudas de custo, nos corredores da traficância de cargos e honrarias, nas filas dos Casimiros de que fala a cantiga do Sérgio Godinho. Mesmo sabendo-se estar-lhes (felizmente) vedado o acesso aos conselhos de administração onde se amontoam os varas, as cardonas, os amarais, os machetes, os bessas, os macedos – uns em liberdade outros no chilindró, iguais no assalto, diversos no engenho.
Infrutífera a busca nos anais do crime, enveredou-se, pois, pelo enxovalho. Função rasteira, capaz das sujidades de que é acusado o rato de esgoto, eficaz como a leptospirose. É por ali que há de ser mil vezes anunciado que “eles são iguais aos outros”. Que há de ser requentado um ódio pior do que o destinado aos beneficiários do “rendimento mínimo” (o pitéu dos populismos fascistas). Que será inventada uma infâmia herdeira do incêndio do Reichtag, a justificar a ausência dos comunistas do noticiário e demais lugares do debate televisivo. Que descerá à rua uma espécie de auto de fé que, à falta de culpa dos gentios, vá à cata dos pais, dos filhos, dos primos, dos tios, dos genros, dos amigos, em devassa da vida inteira e dos ganhos – ainda que lícitos – daqui até ao cromo conquistado ao “bafa” no recreio da escola primária.
É a mentira a ocupar o lugar da verdade, a manipulação a desalojar a inteligência, o servilismo a expulsar a dignidade. É a democracia a minguar às mãos do poder económico, o jornalismo a morrer às mãos dos coronéis, a calúnia em vez da Justiça. Haja, pois, quem se levante e reafirme (como tantas vezes na História) que não pode ser assim.
Manuel Rocha escreve ao sábado, quinzenalmente