Muito tempo antes da criação do Serviço Nacional de Saúde, já o legislador procurava equiparar os servidores do Estado aos trabalhadores das empresas privadas, considerando que estes, por intermédio do Estatuto do Trabalho Nacional usufruíam de “um esquema de benefícios muito mais amplo do que o concedido àqueles que constituem o vasto número dos servidores do Estado”.
Criou-se a ADSE em 1963 e, logo no ano seguinte, foi regulamentado o seu regime, permitindo aos então funcionários públicos participar num esquema de assistência em todas as formas de doença. Apesar da revolução de 25 de Abril de 1974 e a subsequente criação do SNS, a ADSE manteve a sua autonomia enquanto serviço nacional supletivo aplicável aos servidores do Estado.
Também a sua forma de funcionamento é essencialmente a mesma há décadas: ou o beneficiário paga o serviço que escolhe de entre as alternativas disponíveis no mercado e é posteriormente reembolsado de acordo com os montantes previamente fixados; ou então, para evitar o desembolso inicial, o beneficiário escolhe um prestador de serviço que tenha uma convenção com a ADSE e usufrui do mesmo serviço que depois é pago directamente pela ADSE ao prestador convencionado. A celebração destas convenções obedece a uma minuta tipo, e de entre as várias condições, consta a possibilidade de actualização automática das tabelas e das regras em vigor, mediante mera notificação ao prestador do serviço. É por causa desta cláusula contratual que tem havido muita celeuma, que culminou recentemente com a denúncia dos acordos celebrados com a ADSE da parte da CUF e Luz Saúde. Em causa parece estar a facturação dos anos de 2015 e 2016.
De um lado, o governo invoca um procedimento de regularização da facturação desses anos que não pode ser afastado por eventuais vícios na elaboração, formação e celebração da convenção e na actualização automática das tabelas de preços e regras em vigor, um poder unilateral que se arroga deter por via contratual. De banda dos prestadores privados, alega-se que não é razoável pretender fazer regularizações retroactivas de facturas conferidas e pagas, com base em valores que ninguém sabe quais são e em que contextos foram praticados. Dizem ainda que a legalidade das normas relativas às regularizações já está a ser dirimida em Tribunal, onde foi apresentado um parecer do nosso Professor Vital Moreira que pugna pela ilegalidade das normas que modificam os termos contratuais das convenções vigentes em violação dos vínculos constitucionais e legais que limitam o poder da Administração de modificação unilateral dos contratos de que é parte.
Toda esta instabilidade prejudica os beneficiários de um sistema cujo êxito tem dependido muito da existência de uma rede alargada de convenções com a ADSE. Apesar de a ADSE ser financiada pelo rendimento disponível das famílias, logo a sua despesa ser essencialmente privada, não deixou de contribuir para atenuar o défice do Ministério da Saúde em 330 milhões de euros no último triénio. Daí que o Tribunal de Contas muito recentemente tenha recomendado que, de futuro, “o Relatório e Contas do Ministério da Saúde exclua da análise aos gastos públicos em saúde a parte respeitante à ADSE, que é financiada pelo rendimento disponível dos trabalhadores da Administração Pública”.
Em vez de se discutir a sustentabilidade futura e a possibilidade de acesso a cuidados de saúde de qualidade, afunila-se a discussão em torno do SNS, que os beneficiários da ADSE também pagam com os seus impostos mas querem poder escolher livremente o que pagam para além dessa contribuição (descontam dos seus salários 574 milhões de euros por ano para ter acesso a melhores condições de saúde), e assim se coloca em causa a prestação de cuidados de saúde livremente escolhida a mais de 1 milhão portugueses. Apesar das evidências, a Ministra da Saúde tudo parece confundir e chegou a afirmar que “a própria ADSE é uma entorse no sistema. Todos estes funcionamentos paralelos acabam por prejudicar o funcionamento do SNS”.