Opinião – Não lhe deram a palavra

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Alberto confessou que aquele dia lhe mudou a vida. Ele era um rapaz tímido, incapaz de faltar ao respeito a alguém. Mal dormira na noite anterior. Estava inquieto. Ficou a matutar no que dizer e em que momento fazê-lo. Sabia que tinha de ser rápido. Mas os seus estavam consigo. Milhares de capas negras pousadas em ombros determinados e cuja voz não vacilava. Alberto, Alberto Martins, havia tomado posse há pouco tempo como presidente da direção geral da Associação Académica de Coimbra. Pediu uma batina emprestada. Nesse dia não tinha colete.
O jovem estudante de direito era olhado pela polícia do regime. Esperou a transição de orador naquela cerimónia do dia 17 de abril de 1969 em que era inaugurado o novo edifício das Matemáticas, junto à estátua de Dom Dinis. Pediu permissão para falar: “Peço a palavra”, disse. Mas a palavra não lhe foi dada. O Presidente da República Américo Tomás olhou-o fixamente. Um burburinho percorreu como um fio de dinamite a sala, o átrio e a rua. E deu-se uma explosão de ovações e aplausos. De tal forma que não se ouviu mais a sessão solene. Os do regime saíram abruptamente: os ministros, os chefes militares, a comitiva presidencial. Alberto Martins subiu a uma cadeira e falou. Nessa noite foi preso. E muitos mais foram presos.
Hoje vou percorrendo fotos, vejo Rui Pato a tocar com Zeca Afonso, Celso Cruzeiro, Osvaldo Castro e tantas e tantas caras que viraram a história. Fará cinquenta anos no dia 17 de abril que foi iniciado o movimento de massas levado a cabo pelos estudantes de Coimbra, pugnando por direitos que se tornaram o símbolo daquela época e que ainda hoje perdura.
Esta semana, na segunda-feira, Alberto Martins falou-me do tempo de há cinquenta anos e do tempo de hoje. E do tempo que deambulou por dentro desse tempo. No seu sorriso cândido e terno (uma imagem de marca genuína), afável mas firme nas palavras, olha para o retrovisor e vê o miúdo que foi, convertendo-se numa das marcas da liberdade. Impressionou-me a humildade: “Eu fui apenas um, mas nós eramos muitos, e isso é que fez a diferença”. Impressiona-me sempre a humildade contra a soberba. Impressiona-me sempre a humildade, a modéstia e a abnegação. Impressiona-me quando gente grande não se leva assim tão a sério e está de bem com a vida. “Eu podia ter sido apenas um advogado, não fosse aquele dia”. Ele foi um dos mais brilhantes parlamentares e um notável ministro. Mas mesmo assim parece estar pouco convencido do que a sua marca projeta. Por isso é preciso homenagear o dia 17 de abril de 1969. Por ele e pelos que ali estiveram. Pela história de todos e de cada um.
A Fundação INATEL e a Associação Académica de Coimbra deram o primeiro passo. Teremos um programa de simbolismos. Daremos o nosso melhor. Não faremos tudo bem, mas daremos mesmo o nosso melhor. Não podemos perder de vista essa humildade, por isso cooperamos. A nova equipa da AAC é feita de gente jovem mas com pensamento maduro. Gente destemida, corajosa, lutadora, de causas. Gente humilde. Gente boa. Outras instituições acrescentarão valor ao pêndulo que já está em movimento. Esta será uma festa da liberdade, da democracia, dos estudantes, da cidade, de todos. Encontramos cinquenta anos de razões para hoje cooperarmos. E hoje temos mais, porque temos a palavra.

Como disse Rui Namorado, num belíssimo poema que guardo, “A sombra do futuro não permite / esquecer o que semeia a liberdade / e é sempre neste dia que aprendemos / que há sempre um recomeço em cada fim”.

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