Opinião – Como convém

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A verdade é um bem público. Se tomarmos a mentira como o seu contrário (digam lá o que disserem!), significa então que a mentira é um mal. E, já agora, um mal público. Como convém. Mas há mentiras e mentiras. Julgo que as há para todos os gostos: as piedosas, as mal-amanhadas, as que temperam a verdade, as que têm a perna curta e as que têm a passada larga, as que não aquecem nem arrefecem, as deliberadas, as exageradas. As que têm azar. E as que têm sorte, pura sorte. É sobre estas últimas que tentarei dizer umas quantas verdades. Como convém.

Quis o destino que passasse os últimos quinze dias na companhia da televisão. Não foi por ócio, nem por vagar, nem sequer por vontade própria. Mas foi assim e pronto. Digo-o com um certo asco, pois estas semanas, em vez do tempo saciado, trouxeram horas empedernidas, irrealizadas. Fui salvo por seis temporadas da série “House of Cards” e por um par de livros que fui lendo devagar. Como convém.

Neste permeio, de súbito, irrompe em rodapé, com as intermitências de “Última Hora”, a informação sobre o desaparecimento de um helicóptero do INEM. Ninguém sabia dele. Saiu do radar num sábado ao fim da tarde. Eram sete menos cinco quando a torre de controlo viu pela última vez o seu sinal no monitor. Mergulhou na escuridão do aparelho. Sete minutos depois, um popular ligou a avisar ter ouvido um estrondo para os lados do monte. E que podia bem ser uma aeronave. Foi dado o alerta, como convém.

Foi um ápice até que cada canal começasse, como brasas fervilhantes, a expelir toda a lava que ia conseguindo atiçar: a viagem de Macedo de Cavaleiros para o Porto no helicóptero Agusta A109, a fim de transportar uma doente grave, de 76 anos, com problemas cardíacos, ao Hospital de Santo António. Tendo deixado a senhora, a aeronave tomou o regresso à base, levando os dois pilotos, o médico espanhol e a enfermeira. Tudo se especulava. Até ao momento, os factos eram estes (e apenas estes): o helicóptero sumiu do radar e um homem em Valongo ouviu um estrondo ao longe.

No meio de inoperâncias, a Força Aérea foi avisada às oito menos vinte, para pôr em marcha a operação de busca e salvamento. Cerca de duas horas depois já havia de informações mais precisas sobre o local, através das coordenadas do telemóvel do piloto. A Proteção Civil enviou meios para o terreno. Como convém. Foram mobilizadas 203 pessoas para a operação, apoiadas por 35 veículos.

Chegar ao local não era tarefa fácil, devido à orografia e densa vegetação, para além do nevoeiro e das chuvas fortes. Mas eis que uma televisão anuncia saber desde as dez da noite que não há sobreviventes. Facto estranho… O primeiro grupo de locais a chegar perto dos destroços fê-lo perto da meia-noite. E não viu os ocupantes. As autoridades encontraram o helicóptero cerca da uma e meia da manhã, dois corpos dentro e dois fora. Mas essa televisão, sem se saber como, já passara há muito a certidão de óbito. “Sabemos que não há sobreviventes”. E após ela, vários jornais fizeram o mesmo, citando-a. A verdade podia andar enganada. Mas ditas as palavras, elas jamais teriam regresso. Todavia, àquela hora, naquelas condições, ninguém sabia se os ocupantes estavam vivos ou mortos. Podia presumir-se, mas saber, ninguém sabia. E a notícia não é presunção, é facto e certeza comprovada. A notícia não é audiência, é a verdade por ser um bem público.

Quando o INEM deu a notícia da perda das quatro vidas, houve quem noticiasse dizendo que “o INEM confirmou”. Não confirmou coisa nenhuma. O INEM divulgou. Como convém.

Alguns jornalistas recusaram o sensacionalismo e perderam audiência. Outros inventaram quatro mortos e acertaram. A mentira tem destas coisas. Como convém…

 

Bruno Paixão escreve à sexta-feira, quinzenalmente

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