Já com saudade da consoada, memória doce e terna de uma noite diferente, quero falar do bacalhau. Daquele bacalhau com todos. Sempre me interroguei acerca deste hábito natalício. Afinal se é uma noite de celebração, porque o celebramos com bacalhau?
Seria de esperar que o momento do nascimento do menino, luz para o mundo, fosse celebrado com uma receita bem mais elaborada e com ingredientes não tão singelos. Talvez um cabrito, um borrego, um leitão, um galo… Não, tudo isto talvez, mas só no dia 25 de dezembro, dia de Natal.
Até à meia noite, vive-se o Advento, período e preparação para a vinda de Cristo. Até soarem as doze badaladas, até à missa do galo, assim designada por ser o galo o animal que anuncia o dia feito Luz na vinda do Senhor, come-se ementa de jejum. E esta obriga ao consumo de peixe. Estranho, claro, é que num país como o nosso em que a costa atlântica nos dá tanto e tão bom peixe tenhamos ficado subservientes a essa espécie designada gadus morhua vinda dos mares frios do Atlântico Norte. Mas isso é tema para mais linhas de conversa, pois que é longa e densa a relação dos portugueses com o bacalhau. De tal ordem, que já no século XIV se ia à pesca do bacalhau sendo esta uma prática que apesar de tudo nunca impediu a necessidade de importação.
É certo e sabido que o “fiel amigo”, mais do que ser presença assídua nos nossos pratos, quase se senta à mesa connosco pois estamos sempre à procura de uma outra maneira de o cozinhar.
De tal maneira, que parece que no que ao bacalhau diz respeito nunca se esgota a imaginação. Se no que respeita aos outros peixes, a conversa é monocórdica e salta de uma reduzida variação do grelhado, cozido, frito ou assado, já no bacalhau falta sempre descobrir uma nova receita para além dos clássicos. Versátil, o bacalhau, literalmente, dá conversa a quem o cozinha. Não fica a um canto do tacho, da frigideira ou da assadeira, mas convida a uma amena cavaqueira para que se descubra uma nova combinação de ingredientes, de sabores. Mas para além de todas as combinações, sobressai a forma harmoniosa, quase “natural” entre o bacalhau e o azeite.
Ora, curiosa sobre o assunto, fui espreitar as receitas de bacalhau que Carlos Bento da Maia refere no seu Tratado Completo de Cozinha e de Copa. Só queria ver se o bacalhau aparecia em associação ao azeite. Sim, e refere o autor, e do bom!
Ora se o azeite disponível, durante muito tempo, estava reservado para a iluminação e para outras funções ficando para a cozinha a gordura animal mais do que vegetal, porquê esta associação sempre presente que um viajante inglês no século XVIII refere ao falar do que comiam os portugueses?
Talvez, porque o bacalhau era sustento proteico e versátil para os imensos dias de jejum a que obrigava a hierarquia católica este não poderia ser cozinhado com gordura animal, mas sim vegetal. O azeite era assim eleito como companhia fiel ao bacalhau que não sendo da nossa costa se tornou “nosso” por um receituário que o adotou e com ele cresceu e se multiplicou.
O gosto é filho da geografia, é certo, mas também da cultura. E nós só ganhamos com isso. Na noite da consoada e nos 365 dias do ano. Viva o Bacalhau, viva o Ano Novo com muito bacalhau à mesa!