Opinião – À Mesa com Portugal

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Da maneira como o Natal se transformou em cliché estafado pela repetição quase enjoamos a época natalícia quando chegamos à noite do dia 24 de Dezembro. Não fora alguns cuidados e acho que a maioria de nós chegaria à consoada já sem apetite. Mas sejamos realistas, o Natal é irresistível! É claro que do tempo do “pinheirinho, pinheirinho de ramos verdinhos” e do presépio de figuras de barro que púnhamos sobre o musgo apanhado no monte aos enfeites que, hoje, encontramos por aí vai uma distância grande. Mas, a isso chama-se mudança que acontece todos os dias e que dá cor à nossa vida.

O Natal cheira a família sentada à volta da lareira e sabe a mesa cheia de coisas boas. Só isso já é uma bênção. A mesa é rica, é farta, cheira a quente, sabe a pequenos sabores que nos sabem bem só pela recordação. Cada região tem a sua ementa, cada família tem os seus sabores. Impossível fazer da mesa Natal um cenário igual no Norte, no Sul, no Interior ou no Litoral. Por isso, os amigos trocam miminhos, o arroz doce da mãe, as filhoses da avó, os coscorões que a tia faz e que são de comer e de chorar por mais. E é vê-las, todas essas matriarcas, felizes pelo reconhecimento da sua arte de cozinha. E é sentir a felicidade dos amigos pela partilha, por poderem dar o que sempre fez parte dos seus sabores de Natal. Assim, na noite da consoada, apesar da distância, todos estarão muito mais próximos.

A mim cabe-me partilhar as fatias de parida. Cresci a saboreá-las num Natal onde todos preferiam as filhoses feitas de abóbora bem escorrida, um bocadinho de aguardente e pouca, pouca farinha. Mas eu olhava para aquelas fatias de pão envolvidas em leite, passadas em ovo e fritas e “aguava” ou “augava” pelo momento de as comer. Se na noite de Natal eram presença mais do que obrigatória, eram surpresa em dia de semana quando havia pão duro e tempo de uma mãe doceira sempre sem tempo. Hoje, elegantemente, falamos de rabanadas ou se tiverem um pouco de doce de ovos, fatias douradas. Para mim, são fatias de parida. E a história que as acompanha é deliciosa, pelo menos para mim é.

Em Tentúgal, fala-se das fatias de parida que as irmãs carmelitas faziam e que mandavam entregar às mulheres que tinham acabado de dar à luz. Momento de esforço, os partos feitos em casa levavam ao limite o corpo das mulheres sendo que no final sobressaía o desgaste e a perda de força. Logo, logo era preciso alimentar a criança que, com fome, pedia leite num choro esperado e abençoado. Exangue a mulher pedia alguma coisa que a fortalecesse. Do convento vinham, então, as fatias de pão ricamente embebidas em leite e passadas por ovo guarnecidas com o açúcar para as mulheres acabadas de “parir”. Mimo doce pelo açúcar, forte pela proteína, bom pelo saber-fazer, a desfazer-se na boca dava o ânimo e fazia “crescer” o leite que iria amamentar o esfomeado recém-nascido. Logo sossegava a mãe e se calava o choro da fome. As fatias eram alimento das “paridas” e cumpriam muito bem a sua função.

Esta é uma memória de Natal, de Inverno, de dias frios e molhados em que até os meus olhos luziam quando viam uma fatia de parida. Hoje, é momento sagrado, cheio de ritual, é o momento em que se consuma o Natal e tudo aquilo que a noite de consoada representa, em que o calor no peito me faz sorrir pelo sabor, pela recordação, pelo encanto de uma Fatia de Parida. Um Santo e Feliz Natal para todos!

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